As mais
lindas histórias escoteiras.
Gloria
feita de sangue.
Tudo aconteceu no último
verão de sessenta e um. As chuvas de Santo Inácio não chegaram e a beira da
Lagoa do Lagarto o Fogo de Conselho terminou com a escoteirada indo dormir. A
fogueira miúda dava sinais de vida subindo aos céus uma ou outra fagulha
brilhante. Panchito e eu ficamos para jogar conversa fora. Mexicano morava no
Brasil há vinte anos. Muitas vezes me convidou para visitar seu grupo em Aguas
Calientes e nunca tive a oportunidade de ir. Deitados a beira da lagoa sentia o
orvalho da madrugada chegando. Assustei ao ouvir um soluço. E Panchito chorando
baixinho. – Saudades Chefe. São vinte e cinco anos que sempre choro quando vem
na lembrança meu amigo Manuelito. Calado não disse nada. – Sabia que ele iria
me contar toda a historia do seu amigo.
- Chefe Manuelito era um
jovem de seus doze anos, magro raquítico, cabelos louros com grandes olhos
negros a fixar a todos que conversassem com ele. Estava na Tropa a menos de
oito meses. Fomos da mesma patrulha Corvo. Gentil era o nosso monitor. Naquele
sábado nos contou sobre a data do Grande Desafio. Havia três anos que se
realizava no Estádio do Azulão. Sempre fora sucesso absoluto com presença
maciça de todas as patrulhas da região. Quando ele falou do prêmio, uma Faca
Suíça e um Cantil do Exercito, Manuelito sorriu. Sabia que nunca poderia
comprar e decidiu participar. Ele com seu físico e débil nos jogos de força não
teria nenhuma condição de participar que de lá chegar as finais. Sabe Chefe pode
rir, mas o Grande Desafio era uma Briga de Galo! – Uma simples Briga de Galo! -
Olhe Chefe não tão simples, mas o desafio era grande. Muitos desenvolveram
técnicas incríveis. Eu mesmo nunca passei do nono lugar. Já tinha visto
contendores lutarem por horas seguidas.
Tentei dizer a
Manuelito das dificuldades, mas ele insistiu em se inscrever. Pediu-me que eu
fosse seu instrutor. Tentei mas ele mal se equilibrava e desajeitado perdia
sempre o equilíbrio caindo ao chão. Disse para desistir, mas uma semana antes
ele me disse que estava preparado. Chefe, Manuelito estudou parte por parte da
luta. Desenhou e treinou por horas em sua casa pulando em um só pé. Ele sabia
fazer com perfeição uma Asa Direita ou esquerda (cotovelos em forma de V).
Mesmo respirando com dificuldade sempre se mostrou ser um valente. Na Tropa
disseram a ele que o primeiro e o segundo lugar já tinha dono. Neco, Lastimer e
Juventino sempre foram os melhores. O Chefe Wantuil preocupado pensou em não
fazer sua inscrição. Ele sabia que seu corpo não era feito para aquele tipo de
luta. Mas Manuelito não desistiu e conseguiu um quarto lugar com galhardia. Tentou
alertar seus pais e não conseguiu. O Grande Dia chegou.
As arquibancadas fervilhavam
de parente dos escoteiros. Três tropas com cinco representantes para cada uma.
Três cidades diferentes. Um a um os quinze participantes foram apresentados
sobre forte emoção e aplausos. Chico Nonato o Comissário do Distrito deu início
a competição. A maioria parrudo, fortes e Manuelito era motivo de risos por
todos. Quando ele ia lutar gritavam: - Tira o magrelo! Tira o Minhoca. Se
continuar vai morrer! A luta não parava, Manuelito aos trancos e barrancos foi
se aproximando da final. Ele confiava no Joelho de Papagaio que considerava
fatal. Nas finais enfrentou Matusalém famoso por ganhar uma vez o primeiro
lugar. Deu risadas quando viu Manuelito. – Está no papo. Dois minutos e vai
para o chão! Disse. Meia hora de luta. Sempre Manuelito se esquivando. Sentiu o
sangue explodindo em seu peito. Deus! Deus! Não me deixe perder. Preciso da
Faca Suíça, é meu sonho meu Deus! Matuzalém até hoje não sabe o que aconteceu.
Ninguém acreditava no que via.
Botelho Papa Léguas e ele eram os finalistas. Apostas vibravam no ar. Ninguem
acreditava em Manuelito. Um silêncio e a luta de morte começou. Botelho Papa
Léguas não subestimou Manuelito. Se ele chegou até ali é porque era bom. Viu
uma brecha, viu os olhos de Manuelito piscando. Deu Oito longos saltos e pegou
Manuelito de jeito com a asa direita. Mesmo esquivando sentiu uma dor enorme.
Quase perdeu o equilíbrio. O sangue enchia sua boca. Se soltasse seria
desclassificado. A hemorragia que seu pai sempre falava estava chegando. Sabia
que uma ou duas veias tinham partido. Se não parasse iria morrer. – Deus! Não
posso parar me ajude! Botelho Papa Léguas não tinha piedade. Deu uma asa
esquerda para terminar de vez a luta. Manuelito não caiu. Pulou no ar e
convidou Botelho a repetir. Rindo ele não se fez de rogado.
Ele sabia que Manuelito ia
se estatelar no chão. Podia machucar, mas e daí? Quem entra na água é para se
molhar. Não iria ter pena nem dó e nem piedade. Como dizia sua Avó, jogo é
jogado e lambari é pescado. Quando sentiu o hálito quente de Botelho Manuelito
se abaixou e levantou de vez pegando Botelho desprevenido. Ninguem acreditava
no que via. Botelho Papa Léguas se esparramou no chão perdendo a luta!
Manuelito não conseguiu interromper o sangue. Rodopiou e caiu esparramado no
chão e gemendo alto querendo sorrir. Pensou que a faca Suíça seria sua. O
sangue vermelho se misturou com a grama verde. Vários chefes acorreram e o
levaram para o hospital. Ficou entre a vida e a morte por seis meses. Um belo
sábado ele apareceu em uma cadeira de rodas na reunião da Tropa. Uniformizado.
A Tropa espantada. Seu pai e sua mãe o acompanhavam. O Chefe Wantuil que não
esperava foi correndo a sua casa buscar a faca e o cantil.
Toda a Tropa prestou
continência a Manuelito quando ele recebeu seu prêmio. Sabe Chefe ele viveu por
mais oito meses. Não sabíamos que ele era tuberculoso. Nunca poderia ter
entrado nos jogos. Pediu para ser enterrado com a seu uniforme, com a faca e
seu cantil. Panchito parou de contar. Chorava copiosamente. Ali naquela lagoa
sombria, sobre o calor do fogo, dois chefes choravam copiosamente. São fatos
que não se contam. Uma morte de honra. Um menino que aceitou um desafio. Uma
luta sem glória, ou melhor, uma luta feita com Gloria feita de sangue!
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