quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Judas... Da galileia.


Lendas escoteiras.
Judas... Da galileia.

                  Nunca me esqueci da Cidade de Galileia. Don Janvier me procurou; - Seu Vado eu estou precisando achar bons curtumes para me fornecer boas “vaquetas” você sabe, aqueles couros curtidos e preparados à mão. São para calçados finos de uma fábrica em Perúgia na Itália. Por ser calçados especiais precisam de bons couros. Como sócios podemos ganhar algum. Idéia na cabeça pé no caminho e lá fui eu parar no Curtume do Salgado em Tainhomim. Na época eu tinha uma vespa que mais quebrava que andava. Disseram-me que não era longe, uns duzentos e trinta quilômetros de estrada de chão batido indo pela serra da Bodoqueira. Quatro horas depois a pobre da vespa começou a pipocar. Uma pequena placa – Galileia, seis quilômetros – A vespa aguentou firme até lá. Anoitecia. Cidadezinha deserta. Um guardinha me mostrou a pensão da Dona Inês. Melhor pernoitar. Amanhã consigo algum eletricista para ver o que tem a vespinha.

               Não vi a Dona Inês. Um garoto de uns quinze anos me atendeu. Um quartinho simples. Moço o jantar vai até às oito da noite. Banho no chuveiro do corredor. Fui jantar. Restaurante pequeno, oito ou dez mesas. Apenas eu naquela noite. Sentei e logo trouxeram uns pãezinhos deliciosos. Depois uma sopa de cebola estupenda, tão boa que repeti. Passava das oito da noite e fui dar um passeio na cidade. Bebericava uma cervejinha na varanda e uma senhora escura, gorda, cabelos presos por um lenço azul, muito simpática sentou-se ao meu lado. – Olá, sou a Inês. Seja bem vindo a minha humilde pensão! Gostei dela. – Já conhecia Galileia? – Não eu disse. – Aqui já foi uma bela cidade. Chegamos a ter mais de trinta mil habitantes. Hoje? – Nem oito mil e a cada dia mais e mais moradores indo embora.

                 - Ela então começou a contar uma história interessante. – Olhe, disse – A mais de quarenta anos Galileia crescia a olhos vistos. Tínhamos quatro olarias, um enorme curtume e o Prefeito pretendia montar uma indústria têxtil e uma malharia. Foi nesta época que Judas da Galileia nasceu. A Parteira saiu correndo ao ver a marca de corda em seu pescoço. Seus pais arregalaram os olhos. Logo o povo todo da cidade sabia. O tabelião Juventino benzeu o menino e aceitou registrá-lo como Judas da Galileia. O porquê sua mãe escolheu este nome ninguém sabia. Judas cresceu se escondendo nas sombras da cidade. A meninada quando o via saia correndo atrás gritando Judas! Judas! Traidor de Jesus! – Quando ele fez dezesseis anos um dia na Rua do Caroço virou para a molecada, botou a língua para fora, dizem que mais de meio metro e deu um urro tão grande que todos correram como corre o diabo da cruz. Deste dia em diante ninguém mais mexeu com ele. As janelas fechavam a sua passagem.

                   Quando ele fez vinte anos pensou em ir embora da cidade. Não conseguia emprego. Para sua surpresa uma patrulha de escoteiros chegou à cidade de bicicleta. Eram uns doze aparentando quinze a dezessete anos. Armaram barracas no campinho do Zé das Coisas atraindo a atenção da meninada. Judas achou estranho quando um escoteiro o chamou para jantar. Não perguntaram da marca no seu pescoço, não perguntaram nada. O trataram muito bem. Foi à primeira vez em sua vida que Judas da Galileia foi bem tratado. Nem seus pais conversavam com ele. Judas da Galileia chorou muito quando eles foram embora. Foram dois dias os mais lindos que teve em sua vida. Deixaram com ele dois livros que disseram ser do fundador. Escotismo para Rapazes e o Guia do Chefe Escoteiro. Judas da Galileia leu os dois em dois dias. E repetiu a dose.

                  Judas da Galileia queria ser Escoteiro. Sonhava ser Escoteiro. Na sua cidade seria difícil. Não tinha grupo e ninguém interessado em organizar um. Só havia uma solução. Ele mesmo fundar um. Mas como? – Dona Inês me cativava com sua narrativa. Uma emérita contadora de histórias. – Sabe Seu Vado, eu nunca me aproximei de Judas da Galileia. Eu tinha medo. Achava que ele podia ser o próprio Judas reencarnado. O traidor de Jesus. Mas ele me procurou um dia. Olhou-me com uns olhos tão chorosos que não pude dizer não. – Pediu se meu filho o Florindo podia participar. Chamei Florindo e ele de cabeça baixa concordou. Outros pais ficaram sabendo. Ele conseguiu oito meninos. Andava com eles para todo lado. Marchando, fazendo acampamentos, fazendo nós, sinais, tinham umas bandeirolas que divertiam a todos na praça. As moçoilas adoravam os recados que iam e viam das bandeiras dos Escoteiros.

                 - O pior aconteceu em um domingo à tarde. Anselmo Três Dedos chegou à cidade com mais de vinte bandidos. Cercaram tudo. Prenderam o delegado, o prefeito, o juiz e mais oito ordenanças na cadeia local. Deram ordens para ninguém sair de casa. Se uma janela se abrisse eles entravam e matavam todo mundo. Medo geral. O gerente do Banco do Brasil foi obrigado a abrir a agência e o cofre. Foi nesta hora que Judas da Galileia adentrou a cidade cantando com seus oitos escoteiros vindo de um acampamento. Notou a movimentação dos bandidos. Mandou os escoteiros correrem para suas casas. Anselmo Três Dedos o viu parado em frente à fonte da praça. Gritou para ele correr. Ele não correu. Devagar com seu olhar mortífero dirigiu até a onde estava Anselmo Três Dedos. Colocou a mão em sua testa. Anselmo gritou. Um grito horrível. Mesmo assim puxou o gatilho do seu quarenta e cinco. Seis tiros. Judas da Galileia continuou imóvel. Anselmo Três dedos caiu morto. Parecia que um raio o matou. Estava queimado feito carvão.

                        Coloquei os braços na mesa. Olhava sem tirar os olhos de Dona Inês. – Ela continua séria, contando sua história infernal. – Os bandidos que assistiram aquilo saíram correndo da cidade. Não ficou ninguém. Judas da Galileia foi devagar até a praça e sentou ali, naquele banco amarelo. – Olhei pela janela e vi o banco – Todos os políticos vieram abraçar Judas da Galileia. Ele estava sentado, calado, de olhos abertos e morto. Não havia mancha de sangue nos buracos das balas. Só na marca da corda de seu pescoço escorria sangue. Ninguém mexeu no corpo. No dia seguinte o corpo desapareceu. Ninguém nunca mais soube dele. – Parecia que uma praga caiu sobre a cidade. A cada mês, a cada ano famílias e famílias iam embora. Hoje a cidade morreu. Aqui não se vê alegria, ninguém brinca ninguém canta. Dizem e eu posso afirmar que a noite sempre está lá no banco amarelo da praça. Fica lá horas sem se mexer. De vez em quando parece que ele canta o Rataplã com voz rouca.


                 Ela se calou. Olhei para a praça. No banco amarelo vi um vulto. De uniforme e chapéu. Assustei-me. Sai correndo em direção à praça. Precisava ver de perto. No banco não tinha ninguém. Voltei e ouvi baixinho alguém cantando o Rataplã! Voltei-me e nada. Dormi pensando em tudo aquilo. No dia seguinte Joel Boca Torta arrumou minha vespa. Parti sem dar adeus a ninguém em Galileia. Nem a Dona Inês. Perguntei por ela ao menino porteiro. – Minha mãe morreu há vinte anos senhor. Aqui só minha Vó e minha Tia. Falar mais o que? Ainda bem que fiz bons negócios em Tainhomim. Nunca mais voltei em Galileia. Outro dia procurei no mapa. Nada. Olhei no Google, nada. Mas acreditem, havia um Judas da Galileia. Lá constava que era Escoteiro e morava no céu. Foi perdoado e agora faz parte da tropa do além. Deus me livre. Que ele seja feliz e não venha à noite cantar para mim o Rataplã!  

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Era uma vez... Em uma montanha bem perto do céu...

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