Lendas Escoteiras.
Esperança e gloria de um Chefe Escoteiro.
Deixei o livro sob os joelhos. O barulho das ondas do mar e a brisa que
soprava me trouxe de volta a realidade. Eu voltei um pouco as minhas origens,
quando estive em altas montanhas, nas vastidões das planícies do rio Doce e
quando resolvi passar dez dias explorando a Serra do Caparaó. Nada se compara
ao mar. Olhei para cima ao grasnar das gaivotas que faziam seu balé no ar. Aos
poucos retornava das páginas de sonhos que me levaram muito além de uma vida
que não era a minha. Não sei como minha memória rebuscou no passado a figura de
Martinho. Chefe Martinho Alberto Flores. Nunca o esqueci. Ficou gravado em
minha mente e no meu coração para sempre. Fomos amigos por longos anos. Perdi a
conta dos acampamentos, viagens fora do Brasil, aventuras selvagens nas selvas
da Bolívia. Eu tinha por ele um respeito sem comparações. Martinho era para mim
especial. Ser seu amigo era morar em um paraíso de pessoas de almas puras e
onde a fraternidade não era uma simples palavra.
Martinho era amado por todos que o conheciam. Não era esbelto, até feio
se procurarmos um Adônis reencarnado. Era um exemplo para todos nós não só pelo
seu exemplo pessoal, mas também pelo respeito que demostrava com todos.
Enquanto viveu ia a pé para a sede, cumprimentando a todos no caminho com sua
calça curta e seu chapelão Escoteiro. Nunca chegou atrasado e era sempre o
primeiro a chegar. Quem chegava o via sempre com uma vassoura ou espanador
fazendo uma limpeza que não era sua e sim da Patrulha de Serviço. Ninguém
ficava sem um sorriso de Martinho. Sempre com uma palavra encorajadora como a
dizer – Conte comigo, estou aqui para ajudá-lo e servi-lo, acredite sou seu
amigo e irmão escoteiro.
Todos nós sabíamos que Martinho não era unanimidade. Não sei se teve
inimigos, mas sabia que tinha milhares de amigos. Em todas as eleições fazia
tudo para passar o bastão a outro chefe, mas era chover no molhado. Lembro que
em uma atividade escoteira Regional foi convidado para colaborar com um sub
campo Escoteiro. O Chefe do Campo arrogante e prepotente não deu bola para
Martinho. Interessante que no final da atividade ele chorou e abraçou Martinho
dizendo que nunca iria esquecer aqueles maravilhosos dias que passaram juntos.
Nunca
se desentendeu com ninguém. No distrito e região todos tinham por ele um grande
respeito. Não era Insignia de Madeira e nunca foi convidado para cargo nenhum,
apesar de que todos nós reconhecimentos nele o chefão que precisamos para nos
mostrar o caminho a seguir. Martinho não era um erudito e nem tão pouco um
filósofo. Tinha consciência dos valores e do respeito e para isto sempre agiu
de forma correta e fraterna. Ele sempre tinha uma palavra de ânimo e gostava de
dizer a todos: - O que você faz fala tão alto que não consigo escutar o que
você estava dizendo.
Martinho para mim era incomparável. Cecília sua esposa foi à melhor
escolha que ele tinha feito na vida. Ele sempre comentava comigo: Um achado!
Deus me fez um privilegiado. Realmente formavam um casal maravilhoso. Seu filho
Netinho era lobinho e adorava a Alcateia. Em tempo algum influiu em seu
crescimento escoteiro. Ninguém poderia acusar seu filho de ser o “filho do
chefe”. Uma tarde de abril cheguei à sede e não vi ninguém. A porta adentrei
até o almoxarifado. Encontrei Martinho deitado no chão se contorcendo em dores.
Aflito chamei uma ambulância e o levamos para o Hospital. Foram duas semanas de
agonia. Não dormi e nem fui trabalhar. Fiquei ali plantado com Cecília. Ela era
mais forte que eu. O médico nos trouxe o diagnóstico – Câncer nos pâncreas. Não
tem muito tempo de vida.
Demais. Não aguentei e meus olhos encheram de lágrimas. Só não chorei
alto porque tinha de respeitar a dor de Cecília. No terceiro dia, o hospital
encheu-se de escoteiros e chefes. Vieram até dirigentes da Regional. Parecia um
aparato de uma grande atividade escoteira. Martinho era mesmo muito querido.
Todos os funcionários e o diretor do hospital ficaram perplexos. Não entendiam
tudo aquilo. Nada se comparava a centenas e centenas de escoteiros, pais,
amigos que tomavam de assalto os corredores, a entrada e até boa parte da rua
do hospital. Alguns policiais vieram assustados, mas quando souberam o que tinha
acontecido, eles ajudaram a organizar o transito. Os escoteiros portavam-se
dignamente.
Martinho fazia questão de
receber e cumprimentar a todos. Do mais humilde Lobinho ao mais famoso chefão. No
quinto dia de internação Martinho me perguntou: - Chefe Vado eu sei que minha
morte se aproxima. Terei de dizer minhas ultimas palavras? - Eu não sabia o que
dizer e ele me olhou com aqueles olhos que nunca mais esqueci. Lagrimas caiam
dos meus olhos e não mostravam outra coisa a não ser a dor enorme que estava
sentindo. Pediu sua esposa que fizesse uma doação de todos seus pertences ao
grupo para serem doados. Cecília uma incansável mulher, ficou todos os dias ao
seu lado. Seu filho ficou com a Avó Matilde que o adorava. Cecília não chorava.
Seu semblante era firme. Seus olhos vermelhos mostravam todo seu sentimento.
Martinho partiu em uma tarde de maio. Outono. Folhas secas caindo das árvores
naquela necrópole sombria em um bairro afastado da cidade.
Uma brisa leve e calma foram testemunhas da ida de Martinho para onde
ele acreditava que existia outra vida. Nunca me falou nela. Suas exéquias foram
simples. Vieram escoteiros de todos os lugares para se despedir e dar seu
ultimo adeus a Martinho. Não ouve canções. A despedida foi só uma lágrima que
aqui e ali era derramada por todos que foram seus amigos presentes. Martinho
deixou saudades. Quantas saudades. Soube que quiseram alterar o nome do Grupo
Para Chefe Martinho Alberto Flores. Cecilia disse não. Entregou um bilhete que
ele escrevera horas antes de morrer. - Não quero tributos, só quero que
permaneça por toda a vida o nome que conheci, sempre amei e admirei. Grupo
Escoteiro Estrelas Cintilantes.
Até hoje visito Cecília. Uma
forte mulher. Não pediu nada a ninguém. Trabalhava e dizia sempre que Netinho
teria o que Martinho almejava. Se formar e ser um doutor, coisa que ele não
tinha sido. A tarde vai aos poucos se afastando. A noite chega de mansinho.
Ainda estou sentado na cadeira de praia de frente para o mar. O sol já se foi.
A brisa está sendo substituída pelo orvalho que cai. Meus olhos voltaram a
ficar vermelhos. Nem sempre as lembranças são como a gente quer. A vida é
assim, uns ficam e outros vão. Perdi um amigo e o céu ganhou um Anjo.
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