Contos de fogo
Conselho.
O enigma do
Velório do Chefe Bento.
Prefácio: - “Conta-se uma lenda Celta
que existe outro Mundo essencialmente espiritual onde moram os mortos (nossos
ancestrais)”. Conta-se que “ali vivem como deuses de puro espírito. É um mundo
perfeito e belo, onde não há dor, ou tristeza. É uma terra paradisíaca, onde há
fartura de comida e bebida. A lenda conta que não é um mundo exclusivo. Os
vivos podem visitar os mortos e para que isto aconteça alguém tem de sacrificar
sua vida para renascer de novo onde escolheu morar”.
Eu conheci Aurora quando morei
próximo à cidade de Buritis nas Barrancas do Rio São Francisco. Os amigos me
disseram que ela tinha mais de cem anos. Vez ou outra eu a procurava na sua
tapera, para um cafezinho no ponto e ouvir suas histórias de menina que me
fascinavam. Os contos dela me faziam recordar do meu Escotismo que sempre amei.
Ela jurou uma vez que foi escoteira em Cruz das Almas por muitos anos.
Acreditei!
A historia do Chefe Bento Gonçalves ela me
contou quando pescava nas margens do Velho Chico, aproveitando as chuvas
torrenciais e as aguas barrentas. Disse-me que bastava uma Corvina para o
jantar. Era a melhor época para pescar mandis, bagres e Corvinas. Quando
cheguei colocou a varinha de bambu em um suporte, tirou debaixo do banco uma
garrafa de café e me convidou para tomar. Como sempre delicioso, um café do
Jacu que ela plantava, colhia e torrava. Inigualável!
- “Sinhô Osvardo”, nossa
tropa Escoteira começou com vinte e seis e nunca passou de vinte e oito.
Ninguém entrava ninguém saia. Chefe Bento fazia milagres. Raquítico, mancava da
perna direita e mesmo assim era o primeiro a gritar “avante” nas longas
jornadas que fazíamos. Vibrava nos acampamentos e a gente o amava não só pelo
grande Chefe que era, mas pelas histórias que contava ao pé do fogo em um
acampamento qualquer.
Nos jogos, nas
inspeções, nas técnicas mateiras que ensinava aos monitores o fazia de uma
maneira única que a gente nunca mais esquecia. Eu era a Monitora da Patrulha
Uirapuru a única menina que chegou lá. Os outros monitores quando fui eleita
diziam que nossa Patrulha estava no “papo”, mas não foi isso que aconteceu. Não
vou entrar em detalhes, só vou contar um acampamento feito nas margens do Rio
Bacuri.
- No ultimo dia quase
terminando o Fogo de Conselho ele nos contou uma lenda que seus ancestrais
faziam para fazer ressuscitar seus mortos. Só para os mais especiais. Foi
tétrico, sinistro, nos assustamos demais. – Na noite escura com a fogueira
quase apagando só dava para ver as brasas e pequenas fagulhas levadas pelo
vento. – Escoteiros! Ele falava baixinho... Leve o corpo do defunto até o
primeiro poço, jogue-o de cabeça para baixo, espere dois dias e o procure entre
as pedras do riacho mais próximo.
Ninguém achou graça no
que ele contou. “Seu Osvardo” uma semana depois eu estava na sala de aula e a
professora chorando disse que o Chefe Bento tinha acabado de morrer. Retirava
seu pequeno salário no Banco da cidade e sofreu um AVC fulminante. Levado ao
hospital chegou morto. Deus do céu! Foi para mim o fim do mundo! Ele era o pai
que nunca tive o marido que nunca iria ter e o avô que nunca conheci. Sai
cambaleante da escola e fui até o Pé de Jequitibá Rosa, onde a Patrulha deveria
estar reunida. Todos estavam lá aos prantos sem saber o que fazer.
Foi Dudu Intendente
chorando quem disse: - Vamos ressuscitá-lo! – Assustamos... Como? - Ele
relembrou a historia do Chefe Bento no último fogo de Conselho. Fizemos um
plano. Não foi fácil, éramos sete e precisávamos de outra Patrulha para ajudar.
A Patrulha Garça Prateada se prontificou. Pegamos “emprestado” de nossas casas
três lençóis de casal para forrar a maca. Ele estava sendo pranteado no Velório
do Oscar. A melhor hora para pegar seu corpo seria entre três e quatro da
madrugada. Todos estariam dormindo. Não foi difícil, difícil foi segurar seu
corpo já frio e o medo apossou de todos nós.
Até o poço do Cemitério das Almas eram mais de
dois quilômetros. Mundico apareceu com a carretinha. Os pés do Chefe Bento
ficaram para fora. Quatro da madrugada. Dez meninos e quatro meninas de
uniforme escoteiro empurravam a carretinha em silêncio pelas ruas da cidade. O
poço ficava próximo ao Mausoléu do Comandante Palácios morto na revolução.
Segurar os pés do Chefe Bento na boca do Poço foi demais. Francisca rezou um Pai
Nosso e os demais o soltaram. Uma eternidade se passou até ouvirmos o barulho
da água do poço recebendo o corpo do Chefe Bento.
Voltamos correndo para casa.
Sábado sem escola corri até o Riacho Grande e lá estava a nossa Patrulha e a
Garça Prateada. Todos calados. No silencio um redemoinho se formou, o vento
engrossou. No céu nuvens negras apareceram. Tremendo descemos o riacho a
procura do Chefe Bento. Ele sentado na Pedra do Moinho sorria. – Meninos! Estou
indo para o céu. Virei sempre ver vocês! E sumiu nas nuvens antes da chuvarada
que caiu.
- Ficamos chorando e
chamando por ele. - Chefe, Chefe, não se vá! Ele se voltou e disse: - Meus
caros amigos escoteiros. Chegou a hora de ouvir as palavras de Caio Vianna
Martins. Agora terão de andar com suas próprias pernas. Isto não será fácil,
mas com a união de todos irão continuar a sina dos escoteiros. Avante, não
desistam. Sigam os caminhos da verdade e estarão comigo sempre. Sumiu nas
nuvens e nunca mais voltou.
Aurora se calou. Sua
varinha entortou. Um peixe foi fisgado, ela me olhou e sorriu: - “Seu Osvardo”,
fique para o jantar. Aceita ser meu convidado?
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