Lendas
Escoteiras.
Só o vento
sabe a resposta.
Nada a ver com o romance
de J.M. Simmel - por sinal, um livro que devia ser lido por todos. Esta
história foi no final década de sessenta, eu era o Chefe de um Grupo Escoteiro
por estes interiores do Brasil. Uma menina de uns doze anos se adentrou no
pátio de reuniões (era um sábado à tarde) e ficou sentada observando a
movimentação das tropas escoteiras. Ainda não havia a coeducação. Esta só foi
iniciada na metade da década de oitenta.
Em dado momento me
procurou. “Chefe, como faço para entrar nos escoteiros?”. Um olhar profundo, um
sorriso espontâneo, um brilho de um sonho e uma vontade de ser e não poder ser.
Expliquei a ela. Disse que só como bandeirante. “Mas aqui não tem?”. Só
balancei a cabeça negativamente. “Não”, respondi. Seus olhos se encheram de
lágrimas. Tentei consolar, mas ela me olhou e saiu correndo. Passaram-se alguns
anos, acho que uns seis anos, se não me falha a memória.
Conversava com um chefe e vi
uma mocinha adentrando a sede. Pediu para falar comigo e prontamente a atendi.
“Chefe, agora eu tenho dezessete anos. Vou fazer dezoito daqui a três meses.
Agora posso entrar?”. Eu não me lembrei dela e nem sabia se tinha falado alguma
coisa. Perguntei a ela. “Não lembras quando estive aqui há cinco anos pedindo
para ser escoteira? O senhor me disse que só poderia ser bandeirante. Em nossa
cidade não tem. Esperei com calma e sonhando a cada dia em ser escoteira. Agora
sou quase de maior, posso ou não?”.
Claro, eu disse que sim. Nossa
Alcateia tinha 26 lobinhos. Dois chefes masculinos e duas femininas. Tinha que
arrumar um lugar para ela. Uma perseverança em querer, em poder ser e depois de
anos e anos nunca esqueceu seus sonhos. Claro que nunca poderia ser recusada.
Eu jurei a mim mesmo que seus sonhos seriam realizados. Não foi bem recebida.
Uma das chefes da Alcateia me procurou em particular e disse que não poderíamos
aceitá-la no grupo. – Por quê? Disse eu. Porque ela mora no “Ferreirinho” e o
senhor sabe, lá é um bairro de má fama. Sua mãe só pode ser uma prostituta. Não
sei por que falou aquilo.
Era uma jovem educada e
prestativa. Nunca deixou de ajudar ninguém. Infelizmente era uma época onde as
mulheres que por um motivo ou outro foram parar ali naquele bairro não eram
perdoadas facilmente. Não esperava aquela atitude. Pensei que não éramos assim.
Éramos sim, uma fraternidade, cheia de compreensão para com o próximo. Ao
encerrar a reunião ela pediu um Conselho de Chefes. Na reunião explicou o
motivo.
Éramos doze. Claro que
concordei. Ela expos suas razões. Pelo menos sete chefes concordaram com ela.
Vamos colocar em votação disse? Não precisa. Estou entregando meu cargo. Estou
envergonhado. Pensei que aqui teríamos outro pensamento. Mas me enganei. Se
isso for acontecer novamente prefiro não estar presente.
Todos se assustaram com
minha atitude e pediram um tempo para pensar. – Não precisa eu disse. Um dia
vocês me disseram que o escoteiro é amigos de todos e irmão dos demais. Se não
pensam assim, aqui não é o meu lugar! Procuraram-me no meio da semana,
inclusive a chefe em questão. – Desculpe chefe. Agi mal. Muito. Peço perdão.
Coloquei a mão em seu ombro. Nada de desculpas minha amiga. Estou orgulhoso de
você e dos outros.
No sábado seguinte a mocinha
que pediu para entrar não apareceu. No outro também não. Fiquei preocupado.
Será que ele ficou sabendo do que aconteceu e desistiu? Não tinha seu endereço.
Não tinha feito por escrito sua inscrição. Não sabia como achá-la. Dois meses
depois avistei uma mocinha que achei parecidíssima com ela.
Parei e perguntei. Expliquei tudo.
Ela com lágrimas nos olhos me contou a mais triste história que um dia ouvi. Sabe
Chefe, Bea era minha irmã mais nova. Ela se chamava Beatriz. Contou as suas
amigas e a todos lá em casa de sua alegria em ser agora uma escoteira. Seu
sacrifício em esperar cinco anos agora fora reconhecido. Era seu sonho. Ano
após ano ela só falava nisto. O dia inteiro rindo dizendo que um dia seria
escoteira. Nós tivemos que ouvir todos os dias durante mais de seis anos. No
sábado pela manhã se preparou para ir ter com vocês. Levantou cantando alto
para todos ouvirem. Ao sair foi atropelada por um ônibus. Levada ao hospital
faleceu horas depois.
Fiquei pensando em tudo. Nosso
destino, nossos sonhos. Perdidos em minutos. Em segundos. Por quê? Sem retorno.
Acho que só o vento sabe a resposta
Nota de rodapé: - No escotismo vivemos em um mundo
maravilhoso e muitas vezes não imaginamos quantas situações nos colocam na mão
do destino. Se tivéssemos condições de escrever as histórias de cada Chefe do
que passou durante sua participação daria para preencher milhares de páginas no
livro da Vida. Posso dizer que também passei por isto. Hoje já velho me lembro se
tudo poderia ter sido diferente. Não sei. Só o vento sabe a resposta.
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