Lendas
Escoteiras.
“Flor
do Campo”. O sonho não acabou.
Essa é uma história verdadeira. Quem
sabe alguma nuances fora do contexto mas nada que prejudicasse o conteúdo. Faz tempo, muito tempo! Eu era Chefe de um
Grupo Escoteiro, um grupo simples, amigo, fraterno onde só existia a felicidade
no coração. Chefes que se confraternizavam, trocavam ideias e faziam de suas
horas sociais visitas aceitando convites de amigos para bailar na casa de
alguém. Éramos próximo de cem membros, eu sabia o nome de todos e até muitos
pais que vinham se confraternizar. Muitos daqueles jovens ainda me dizem alô,
como vai. Bom demais.
Todo sábado depois de receber amigos
e pais interessados, eu ia para o pátio ver a movimentação das alcateias e
tropas. Sem interferir, só para ver o adestramento e se alguém precisava de
alguma coisa, um conselho e coisa e tal. Em um deles avistei uma menina
magrinha, vestida com simplicidade, sempre com a mesma roupa, um sorriso
ingênuo e cativante, mostrava ser uma jovem que prezava sua humildade na apresentação
pessoal. Cabelos castanhos compridos, com uma pequena trança pendendo para
frente, escondendo um pouco de si própria.
Olhava com olhos brilhantes a
movimentação das escoteiras em uma atitude cautelosa, olhando de soslaio, com
receio de ser chamada a atenção. Seus sentidos estavam nas jovens escoteiras
que brincavam, riam, cantavam e vi que ela de longe sonhava em ser uma delas
como se estivesse em uma patrulha participando. Naquele sábado em uma promessa
eu vi que ela tinha os olhos cheios de lágrimas. Queria se transportar para a
cerimonia, ser ela, sentir o lenço no pescoço, o grito da Patrulha e a amizade
sem par. Para ela aquele momento era prodigioso que transpunha no seu
imaginário, a ser mais uma que achava nunca poderia ser.
Vi com surpresa sua
expressão quando a chefe perguntou se ela poderia participar de um jogo. Das
três patrulhas duas estavam com sete e uma com seis. Completar seria mais
lógico para haver igualdade de competição. Acreditem, não tenho palavras para
descrever sua alegria. Incrível! Nunca vi ninguém participar de um simples jogo
com tanta energia e vibração. Ao final do jogo um agradecimento e vi que ela conseguiu
ficar mais próxima, ouvindo, tentando entender o que as patrulhas faziam, com cabos
pequenos, bandeirolas, e uma parafernália de trecos misteriosos.
Naquele dia me aproximei e
fiz o convite: - Quer ser escoteira? Ela não me respondeu. Seus olhos de novo
encheram-se de lágrimas e saiu correndo. Não entendi. No sábado seguinte lá
estava ela. Olhou para mim e saiu correndo. Pedi a Chefe da Tropa que fizesse o
convite, quem sabe ela se abriria para explicar porque chorava e saia correndo.
Ficamos sabendo de seu padrasto, homem mau, não trabalhava e exigia tudo que
sua mãe ganhava como faxineira para beber e gastar o único sustento da casa. Contou
que quando falava sobre ser escoteira levava uma surra do padrasto. Ela não chorava,
nunca chorou. Era ponto de honra para ela.
A sua história parecia a historia
da Cinderela sem sapatinhos de cristal e com um final triste sem o príncipe
encantado. Nada podíamos fazer. É impossível o escotismo ajudar neste processo,
pois ele depende muito dos pais. Um dia observei na porta da sede um homem dos
seus 50 anos, meio grisalho, semblante arrepiante uma cicatriz no queixo,
vestido de maneira desleixada com um olhar nem tanto amistoso. Dirigiu-se ao
meu encontro e levantou levemente sua blusa mostrando estar armado. O nervosismo
apareceu mesmo tendo alguma experiência no assunto.
Não gostei da maneira com que me
interpelou. Perguntou brutamente onde estava “Flor do Campo” e eu disse não
saber quem era. Com o dedo em riste disse que ela queria ser escoteira, mas ele
nunca a deixaria entrar. – Vocês são uma turma de riquinhos. Agora ela fugiu de
casa moço, e se até amanhã não aparecer o senhor é o culpado, falou cutucando o
revolver na cintura. Fiquei sabendo depois que ela jogou uma chaleira de água fervendo
em seu rosto quando ele tentou agarrá-la e saiu correndo. – Ela fugiu de casa, se não aparecer o senhor
me deve satisfações!
Fiquei calado, não era
hora e nem adiantava retrucar. Dois pais da Comissão Executiva presentes
ficaram atemorizados e sobressaltados. Eu também estava espantado e assustado.
Não era nenhum herói, de karatê e de luta livre não entendia nada. Pelo sim ou
pelo não, ele saiu praguejando e fazendo ameaças. Durante dias fiquei pensativo
sem saber como agir. No sábado seguinte, ainda preocupado fiquei de olho no
portão para ver se o padrasto de “Flor do campo” podia aparecer. Não veio, a mãe
dela surgiu com ela pelas mãos. Chorando vez sim vez não, contou sua história:
Chefe ele é um bandido perigoso e foi morto na tentativa de um assalto a banco.
Olhei para “Flor do Campo” cujo sorriso era contagiante.
Ela agora acreditava que
seu sonho de ser Escoteira seria real. De um padrasto violento via que seu
mundo mudou para melhor. “Flor do Campo” foi uma surpresa agradável. Sua
promessa foi inesquecível. Chorou de alegria como se estivesse vivendo um conto
de fadas. Ficou conosco por 6 anos. Foi escoteira e guia. Sempre conseguindo
todas as insígnias e distintivos possíveis. Orgulhosa na apresentação fazia tudo
para ajudar e com suas boas ações incentivava as demais amigas da Patrulha e da
tropa.
Quando fez dezoito anos
voltou para a terra onde tinha nascido. Sua mãe recebeu uma pequena herança de
um sítio de sua avó no norte do país. Na rodoviária nos despedimos com a Canção
da despedida. Muito choro, mas todos orgulhosos de “Flor do campo”. Cinco anos depois, uma surpresa - recebemos na
sede sua visita e acompanhada de seu marido e dois filhos. Apresentou-nos a
todos com orgulho. Estava a passeio e contou que era Akelá de lobinhos em um
Grupo Escoteiro na cidade onde morava. Sorria nos encantando a todos.
Havia ainda muitas jovens que
eram de sua época. Uma grande confraternização e lembranças amigas. De vez em
quando recebia uma cartinha. Hoje não mais. O tempo apaga o tempo. Nem tudo
pode ser como sonhamos. Lembro que me pedia sugestões de programas, enviava
fotos e sempre contando como era seu Grupo Escoteiro. Eu um Velho Escoteiro
sempre tive um grande orgulho em ser amigo dela. São coisas impossíveis que se
tornam possíveis pela obstinação de um movimento incrível. Sempre digo que o
escotismo é uma filosofia muito linda, uma maneira de sorrir e viver feliz para
sempre!
Nota
- Nunca mais ela deu notícias. Espero que ainda esteja com aquele sorriso, com
aquela simplicidade, com aquela vontade de ser escoteira e de lembrar da sua
promessa e sua Lei que um prometeu cumprir. São fatos que nos fazem acreditar
que o Movimento Escoteiro tem tudo para dar uma nova vida um novo destino a quem
dele se aproxima. Sempre Alerta!
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