Conversa ao
pé do fogo.
O segredo do
Velho Marcondes Faxineiro.
“NÃO JULGUEIS PARA NÃO SERDES JULGADOS. AQUELE
QUE ESTIVER SEM PECADO QUE ATIRE A PRIMEIRA PEDRA”.
Não foi por vontade própria que pernoitei em Laranjal do Sul. Meu carro
deu um defeito na parte elétrica e a placa indicava uma cidade de trinta mil
habitantes convidando a todos que passavam a conhecer as belezas do lugar.
Achei um mecânico eletricista palrador e dizia ser o melhor da redondeza. De
fato em menos de duas horas o defeito desapareceu. Eram cinco da tarde. Ele me
aconselhou a pernoitar ali na pensão de Dona Hermínia, pois ia ter um dos
melhores jantares de minha vida e no dia seguinte partir para meu destino.
Aceitei o conselho. Ao entrar na pensão vi na rua muitos jovens Escoteiros e
perguntei a um deles onde iam. “Moço, hoje é dia de reunião”! E onde é a sede?
Ele me mostrou bem no final da Avenida principal. Daria tempo. Tomei um belo
banho, jantei como um rei e lá fui eu de uniforme caqui ao encontro dos
Escoteiros. Eu era um deles e nada melhor do que dar a mão esquerda e um Sempre
Alerta aos irmãos de ideal.
Como sempre fui muito bem recebido. Esta é uma das vantagens nos grupos
escoteiros. Se você é um desconhecido, de outra cidade a recepção é digna de
reis e rainhas em terras estranhas. Fui apresentado a todos. Chefes,
assistentes, Akelá Balu e até diretores que vieram ao saber que eu estava ali.
Todos falando ao mesmo tempo querendo saber notícias escoteiras da capital. Fui
apresentado a Alcateia, a Tropa Escoteira e sênior além das meninas da tropa
feminina e as guias. Eles não tinham pioneiros. Serviram-me café com deliciosos
biscoitos de polvilho. São coisas de Escoteiros estas recepções. Durante mais
de uma hora ficamos na sala da sede conversando, sempre chegando um pai ou
outro, um dirigente ou outro, um politico e até mesmo o vice-prefeito vindo dar
as boas vindas ao Chefe da capital. Sou um Escoteiro observador. Não deixo
passar nada. Meu instinto de sempre alerta sempre está atento a tudo e a todos
em minha volta.
Desde que cheguei vi um senhor miudinho, bem pequeno, com uns olhinhos
azuis e um sorriso encantador. Vestia-se simplesmente, com uma camisa de
algodão branca desbotada e um chapéu com furos e velho muito velho de Escoteiro
na cabeça. Não me apresentaram. Esperei o momento oportuno e perguntei ao Chefe
do Grupo quem era ele. – Ele Chefe? Ele não é ninguém. Vêm aqui todas as
reuniões e faz a limpeza da sede, leva e trás recados quando necessário. É o
nosso estafeta e faxineiro e nada mais que isto. – Não entendi perguntei – O
Chefe ficou sem jeito e abriu o jogo – Olhe Chefe, não sei se o que vou lhe
contar seria contra as normas, mas ele é um ex-presidiário. Há quase trinta e
cinco anos atrás encontrou a esposa com outro homem. Sentiu sua honra ultrajada
e matou o homem deixando a mulher viva. Se tivesse matado a mulher não ficaria
tanto tempo na cadeia. Aqui não se prende ninguém por crime contra a honra.
Foram 28 anos sem poder ir a nenhum lugar.
- Quando saiu voltou ao seu velho oficio de sapateiro. Por sinal é um
profissional de altíssima qualidade. Procurou-me no grupo há dois anos. Disse
que queria ajudar. Prestar serviço à comunidade. Conversei com a diretoria, com
o delegado, com o Juiz de Direito e eles acharam que eu poderia deixá-lo ajudar,
mas longe dos meninos. – Porque perguntei? Bem eles me disseram que passou
muitos anos na cadeia e quem sabe ideias diferentes não podem aflorar e ele
aprontar alguma? Eu não disse nada. Uma vez culpado, culpado pra sempre. Já
tinha visto tantas coisas na vida que achei melhor calar. Mas não deixei de me
levantar e ir até ele cumprimentá-lo. Precisam ver sua alegria quando pegou na
minha mão. Seus olhos brilharam. Sempre esteve ali subserviente e muitas vezes
humilhado e quando alguém como eu que achavam ser um Super chefão, um Velho
lobo estava cumprimentando-o, ele foi às nuvens. Quase chorou.
No dia seguinte levantei cedo, queria colocar o pé na estrada o quanto antes.
Tinha de chegar a Rio das Flores antes do meio dia. Compromisso inadiável. Ele
estava na porta da pensão me esperando. Deu um belo sorriso e me presenteou com
um belo forro de mesa, de linho branco e bordado nas pontas e no meio uma
enorme flor de lis dourada. Trabalho de mestre. – Amigo, eu não mereço tão bela
comenda! Disse. Ele sorriu e disse que eu era o primeiro que lhe apertara a mão
no Grupo Escoteiro. Pensei com meus botões e falei – E se não o cumprimentam e
não o querem lá porque ajuda? – Ele me olhou com aqueles olhos azuis miúdos e
disse – Uma vez Chefe, uma jovem guia no grupo me disse que devia fazer sempre
o que tive medo de fazer. Encarar sem ódio, ajudar sem esperar recompensas. Ela
me falou de uma maneira tão simples que vim aqui e comecei a ajudar. No inicio
limpava o campo de atividades varria em volta da sede e depois me deixaram
entrar. Hoje lavo tudo, costuro barracas, com o couro que tenho na sapataria
faço totens de patrulha e não faço mais porque não deixam.
Fui embora com lágrimas nos olhos. Não ia interferir na vida daquele
grupo Escoteiro. Lembrei-me de Paulo Coelho que escreveu certa vez – “Quem tentar possuir uma flor, verá sua beleza
murchando”. Mas quem apenas olhar uma flor no campo, permanecerá para sempre
com ela. Você nunca será minha e por isso terei você para sempre. Nunca mais
voltei a Laranjal do Sul. Aonde vou sempre aprendo e tomo lições de vida. Lá
aprendi com um presidiário como fazer o bem sem olhar a quem. Dizem que as mais
lindas palavras de amor são ditas no silêncio de um olhar. Percorremos dia a
dia uma trilha e se não deixarmos marcas do bem ninguém poderá aprender conosco
quando nos seguirem. Um ex-presidiário ensinou-me muito mais que muitos grandes
Líderes Escoteiros. Ensinou-me que a palavra servir é para quem tem amor no
coração, para quem não espera recompensas e se sente pago com um sorriso. Como
disse Machado de Assis, há pessoas que choram por saber que as rosas têm
espinho, Há outras que sorriem por saber que os espinhos têm rosas!
“Não julgueis, pois, para não serdes
julgados; porque com o juízo que julgardes os outros, sereis julgados; e com a
medida com que medirdes vos medirão também a vós”. - Mateus, VII: 1-2.
Dar as mãos sem olhar a quem? Você escolhe qual mão
vai apertar? Não julgueis para não ser julgado, abra o seu coração e saiba
perdoar. Palavras lindas que nós e Escoteiros deveríamos ter sempre na mente.
Como dizia Sartre, viver é isso: Ficar se equilibrando o tempo todo, entre
escolhas e consequências.
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