Lendas escoteiras.
Onde começa o inferno!
Prologo:
- É muito estranho ter gente passando fome e morrendo de AIDS, e ter gente no
espaço procurando um lugar para irmos quando tudo na Terra falhar. Não parece
que somos todos da mesma espécie. Afinal somos irmãos tu e eu?
Meu nome é Manoel Boa
Ventura. Sou portador do vírus da AIDS. Ela entrou em mim sem eu perceber.
Vitória disse que me amava, aceitou meu pedido de casamento. Antes que o fato
consumasse comecei a tossir sem parar e a emagrecer. Achei que era uma gripe ou
mesmo uma pneumonia. Sem ter um plano de saúde fui ao posto da minha cidade
marcar uma consulta. Vitoria quando me viu assim ficou desesperada. Não
aguentava mais nem andar.
Eu amava Vitória e o
Escotismo. Participei com abnegação por muitos anos. Entrei como menino e ali
encontrei parte da minha vida. Meu Chefe Tomé não era nosso Chefe, era nosso
amigo, nosso confidente, aconselhador e ouvinte. Fui crescendo fui Sênior e aos
18 anos assumi como Assistente de tropa Escoteira. Ainda não tínhamos os
Pioneiros. Tive duas namoradas. Alice e Vitória. Alice disse que se apaixonou
por Alfredo e me deixou. Quando o Chefe Tomé faleceu de um câncer no esôfago
assumi a tropa. Adora os meninos escoteiros.
Escoteiro, Chefe exemplar
sempre procurei dar exemplo para que os jovens da Tropa pudessem ser como eu cumpridor
da Lei e da Promessa. Fui honesto com as jovens que namorei mesmo de longe sem
falar com o respeito. Alice mal me deu um beijo e saiu correndo sorrindo. Mudaram
de cidade e nunca mais a vi. Vitória não. Foi uma paixão avassaladora.
Praticamente me seduziu uma noite em sua casa quando seus pais estavam em
viajem.
Contou-me que não era
mais virgem. Entregou-se a Ricardo pensando que ele seria o homem de sua vida.
Não foi. Dois meses depois mal conseguia ir à reunião escoteira. Os
acampamentos, as atividades aventureiras não mais aconteciam. Via no rosto dos
meninos um desapontamento com tudo que estava acontecendo. Com exceção de
Nonato ninguém saiu. O dia que combinei com os pais de Renato para conversarmos
sobre sua saída tive uma recaída e desmaiei em plena Rua do Ouvidor.
Levado ao pequeno
hospital fui diagnosticado com AIDS. Sempre tive calma, aceitação das
adversidades, mas quando o medido me disse sem subterfúgios como se eu mesmo
tivesse colocado a corda no pescoço quase chorei. O Hospital me ofereceu um
coquetel ante HIV. Um mês depois voltei a andar. Parecia que iria melhorar, mas
fui prevenido que não existia cura. Teria de conviver com o vírus por toda a
vida.
Apesar de nunca ter feito
sexo com Vitória aconselhei a ela fazer o teste. Deu positivo. Chorou comigo na
enfermaria por horas. Quando recuperei um pouco de minhas forças resolvi voltar
ao meu habitat escoteiro. Os meninos me receberam com alegria e satisfação. Os
demais chefes e muitos pais não. Fui praticamente aconselhado pelo Chefe do
Grupo Marcondes a não voltar mais. Foi sincero. Muitos ainda não sabiam até
onde a AIDS poderia chegar.
O vírus fez menos efeito
em Vitória. O novo medicamento agora é distribuído para os portadores do vírus.
Ele me mantem vivo. Sei que não mais serei o escoteiro de outrora, mas daria
minha vida para voltar ao que era. Os campos, as várzeas, as campinas e as
serras distantes ficaram como sonhos que um dia tive e agora passou. Alguns dos
escoteiros ainda me visitam escondidos dos pais. Contamos causos, histórias e
vez ou outra belas gargalhadas.
Casei com Vitória. A
princípio tive medo ao fazermos amor. Depois com preservativos tivemos uma vida
feliz. Quando retorno da minha oficina passo pela sede do Grupo Escoteiro. Uma
saudade imensa. Às vezes lágrimas caem sem eu poder dominar. Mesmo estando no
século XXI o medo à dúvida ainda impera em nossa população. Ninguém fica ao
lado de alguém que é aidético. Eu e Vitória pensamos em tentar adotar um filho.
Quando nos inscrevemos dissemos o que somos. Dona Elza franziu o rosto e disse:
- Não sei!
Às vezes quando as tardes
chegam sento na minha varanda e choro, lamento minha sina, mas Vitória chega
para me abraçar. Nunca a culpei. Afinal ela foi uma vítima. Eu sei que é idiota
e tosco ostentar qualquer forma de segregação a qualquer pessoal que possuem
uma condição de saúde que não é contagiosa ao contato social. Mas não posso
mudar o mundo. Um dia quem sabe teremos um novo sol, uma nova vida, um vento
soprando e trazendo os amores que tivemos que abdicar.
Esta é minha história. Aprendi
a viver com ela. Ainda sou escoteiro e serei por toda minha vida. Sei que
fizeram um Conselho de Chefes para aprovar minha volta. Exaltados foram contra.
Os pais não vão aceitar. O Grupo vai perder com isso. Não importa, ninguém irá
me roubar meus sonhos, meu passado, minhas lembranças. Vivo com elas ontem e
hoje e amanhã também!
“Meu
conselho? Antes do durante, pense no depois. Use camisinha e viva feliz para
sempre”.
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