Lendas
Escoteiras
A saudade
mata a gente!
Eu me ofereci para levá-lo.
Era apenas um encontro de velhos escoteiros em um lugar qualquer da minha
cidade. Não me inscrevi para ir e só fui fazer a inscrição depois que soube que
ele queria ir. Foi Donana quem me telefonou. – Chefe, a família está aflita,
ele não tem condições. Há dias acamado e parece que não deram muita esperança
de vida. Ninguém sabe quem disse para ele do Encontro dos Antigos Escoteiros em
um Fogo de Conselho dos seus amigos do passado. Não são tantos assim, mas ele
não para de dizer que vai. Não arreda o pé! – Eu não o conhecia, nunca o vi
pessoalmente, alguns chefes me falaram sobre ele. Diziam que quando mais jovem
era uma pessoa maçante, insistente nos seus ideais, sempre a dizer que seu
tempo era o melhor e que hoje somos sombra do passado.
Eu tinha meus problemas. Por
sinal muitos que não seriam de fácil solução. Meu emprego perigava, poderia a
qualquer momento ser demitido. Linalda minha esposa sempre dizendo que tinha de
ir devagar. – Jove, temos dois filhos já crescidos e precisam de você e de mim.
Você gasta muito nos escoteiros. Quem não pode pagar você paga, nunca deixou
ninguém para trás. Sempre foi daqueles que diz que ou vão todos ou não vai ninguém.
E se você ficar desempregado? – Ela tinha razão, agora tinha um salário
razoável, mas até quando? – Era difícil parar, sempre fui Escoteiro desde os
seis anos. Amo de montão esta filosofia que me encanta, não iria parar. Se Deus
quisesse que eu fosse um desempregado não iria retrucar. Mas do escotismo não
iria abrir mão.
Donana me telefonou à tarde.
– Chefe estou com um problemão. Você não conhece o Chefe Polar. Nem sei se este
é seu nome. Já está chegando aos 95 anos. Dizem que conheceu Baden-Powell e eu
não duvido. Foi Chefe no Montezuma e só saiu de lá quando o Conselho de Chefes
achou que estava na hora dele partir. Diziam que era impertinente maçante e até
de irritante o chamaram várias vezes. Comentam que ele chegou em casa chorando,
e mesmo Isabel sua esposa tentando consolar ele passou um semana enfastiado,
olhos cheios de lágrimas e caiu prostrado em uma cama e não levantou mais.
Disseram até que ele queria tirar sua vida. – Olha ele já estava com 88 anos e
no grupo dizem era um Pé no Saco! Ninguém estava aguentando mais.
Fiquei pensando se quando
envelhecesse eu seria assim também. Liguei para sua esposa me prontificando em
levá-lo. Ela chorava e eu apiedado não sabia o que dizer. – Chefe, Polar quase
não anda. Tosse o tempo todo. Sempre com remédios a cada hora do dia. O médico
recomendou repouso absoluto, mas ele não obedece. Diz que vai de qualquer jeito
e ninguém vai impedir. Não sei por que Joviano o convidou. Ele devia saber que
Polar não tinha condições. – E os filhos porque não o levam e ficam juntos? –
Ela ficou calada por instantes. – Chefe, meus filhos nunca foram bons
escoteiros. Só ficaram enquanto ele praticamente obrigou. Hoje não veem com
bons olhos o escotismo. Chefe não sei se seria uma boa ideia.
Combinei com ela que passaria
por volta das sete da noite. Eu o levaria com prazer. - Afinal um dia serei
como ele senhora. Todos nós que amamos o escotismo um dia seremos velhos,
idosos, velhos lobos, ou seja, lá o que nos vão chamar. Se vai ser seu último
porque lhe tirar a chance de recordar? Liguei para Fagundes um Velho Escoteiro
para saber melhor sobre Polar. – Chefe, um grande homem. Deu sua vida pelo
escotismo. Nunca bajulou ninguém. Sempre foi honesto com sua escolha e dizia o que
pensava sem esconder. Não quiseram entregar para ele o lenço da IM. Diziam que
ele não tinha espírito Escoteiro. Nunca aceitou pagar por uma medalha por isto
não tem nenhuma. Gritava e ainda grita aos quatro ventos que seu escotismo é o
de raiz, o de Baden-Powell!
Vesti meu uniforme devagar.
Sabia que iria levar alguém que merecia meu respeito e minha admiração. Sempre
fui do lado dos humildes, dos que se comprazem em não mudar de rumo ou direção.
Quando amarrei o cadarço do sapato preto, vistoriei de novo o friso do meião.
Olhei pela última vez no espelho se meu lenço estava como sempre bem colocado.
Perfeito. Sem dobras, sem sobras. Coloquei meu chapéu devagar. Não coloquei as
duas medalhas que me deram. Um de bronze de bons serviços e outra de gratidão
também bronze. Quarenta anos fazendo escotismo e disseram que eu ainda
precisava mostrar como servir a União dos Escoteiros do Brasil com bons
serviços prestados. Hoje penso que não devia ter pagado por elas. Era meu
direito como Escoteiro. Despedi com um beijo afetuoso em Linalda entrei no meu
fusca e parti. Não tinha pressa. Tinha tempo, muito tempo.
Na esquina da Sete de Setembro
com a Saúva uma ambulância passou nos gritantes rumo ao centro da cidade. Meu
coração acelerou. Entrei na Rua Peçanha. Na porta da casa de Polar um mundão de
gente. Desci Dona Isabel sua esposa me olhou e disse: - Chefe, não precisa
mais. Polar partiu, nunca mais vai voltar. – Ela chorava a perda de alguém com
quem viveu uma vida. A abracei carinhosamente. – Para onde foi? O Grande
Acampamento do Universo? Não sei se ouve o Fogo do Conselho dos velhos. Nunca
perguntei. Voltei para casa chorando. Nunca vi Polar, não o conhecia e nunca
apertei sua mão. Nem sei como era, mas eu o tenho no coração. Ali ele vai viver
para sempre como se fosse meu guia, meu Chefe, e meu irmão!
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