Lendas
Escoteiras.
“Corisco”
- “Filho”, o Corisco agora é seu! –
Quase pulei no pescoço de papai de tanta alegria. Amava Corisco, ele era meu único
amigo no sítio onde morávamos. Conversava com ele e muitas vezes me levou para
as reuniões de minha Tropa escoteira na cidade. Não era longe, menos de cinco quilômetros
– Mas você sabe, disse papai, Corisco já tem mais de 30 anos. Não vai viver
muito. Portanto não force quando montá-lo. – Naquela noite pedi para Deus que
não o levasse tão cedo. Depois rezei para minha mãe que jazia na cama sem poder
andar. Conversava sorria me animava, mas não fazia mais nada. Eu era o homem da
casa com meus doze anos. Tornei-me cozinheiro, lavava, passava fazia de tudo e
Dona Rita uma vizinha vinha uma vez por semana para ajudar. Papai quando
chegava da lida dava banho nela, e ficavam horas conversando. Um amor de
verdade!
Nós tínhamos uma roça de milho,
de feijão e outra de arroz. Dava para o sustento e meu pai aceitava convites
para trabalhar nas fazendas próximas. Era um ótimo vaqueiro e tirava de letra
qualquer tipo de plantação. Naquele sábado me aprontei para ir à reunião de
minha patrulha e de minha tropa. Todos os sábados papai sempre chegava antes do
meio dia e eu almoçava e saia a pé. Agora com corisco mesmo não correndo seria
mais rápido. Passei a semana sonhando com meu Cordão Dourado que iria receber
naquele dia. Até imaginava na ferradura todos com a palma escoteira e a
patrulha dando o nosso grito. Deu uma hora e papai não chegou. Fiquei
preocupado. Nunca deixaria minha mãe sozinha. Se ela soubesse iria insistir
para eu ir.
Pela manhã passei meu
uniforme, limpei meu chapéu, poli minha fivela do cinto e engraxei meus sapatos
pretos. Minha mãe levou um tombo na escada de nossa casa e ficou com a coluna
fora do lugar. Médicos sempre dizendo que se operar ela voltaria ao normal.
Papai a levou a capital, mas nenhum médico deu esperança. Um se ofereceu por
alta quantia que seria impossível conseguir. Já haviam se passado um ano e
quatro meses. Mamãe nunca reclamou. Sempre disposta na cadeira de rodas e fazia
tudo que podia fazer. Eu sabia que naquele mês época da colheita papai iria
colher um belo campo de arroz de feijão e as aboboras na beira do rio deram
como nunca. A fartura chegou. Eu sabia que papai ia vender parte para ajuntar e
levar minha mãe de novo ao especialista. Ele nunca desistia.
Nos meus treze anos sabia
fazer de tudo. Fazia as refeições diárias, lavava e passava e nunca deixei a
casa sem limpar. Durante a semana deixava a escola correndo para chegar antes
de minha mãe ir para a cozinha. Papai insistia para ela não se esforçar. Nunca
esqueci o dia que minha mãe caiu e desmaiou. Sozinha em casa só cheguei da
escola duas horas depois. Caia uma chuvinha fina e a terra molhada ela nada
podia fazer. Comecei a ficar preocupado. Quase duas horas quando vi papai apear
do cavalo e me pedir desculpas. Sorri para ele. Era duas horas e a reunião
iniciava às duas e meia. Dei nele um beijo no rosto, fui até o quarto e despedi
da minha mãe. Montei em Corisco a principio sem correr. Falei para ele baixinho
se aguentaria um pequeno galope. Dito e feito, na curva do redemoinho ele parou
e ficou de joelhos nas quatro patas. Já tinha visto isto antes com umas vacas
do Seu Nolasco. Sempre morriam depois.
Chorando sai correndo até a
sede escoteira. A reunião já havia se iniciado. Contei tudo para o Chefe Jofre
o que aconteceu. Ele bondosamente me disse para não desesperar. Para tudo tem
uma solução. Chamou os monitores pedindo para pegarem no almoxarifado cordas,
facões e forquilhas das barracas. Levou também uma lona de caminhão que quase
não era usada. A principio não entendi por que. Saímos todos juntos até onde
estava Corisco. Ele não perdeu tempo. Logo as patrulhas cortaram troncos de
árvores pequenas e começaram a montar dois suportes que iria levantar o Corisco
acima do chão. Depois ele iria se apoiar de leve até se firmar. Disse o Chefe
que ele teria de ficar ali por dois dias e eu devia trazer capim e agua para
ele. Um Escoteiro foi avisar papai. Quando ele chegou através de roldanas com
as cordas Corisco já estava em pé. Papai me abraçou e disse que tudo daria
certo. Ah! Papai, como você não existe.
Muitos escoteiros se
ofereceram a ficar comigo até na segunda. Trouxeram barracas e me ajudaram
muito. No segundo dia vi que Corisco queria se apoiar. Soltamo-lo aos poucos
usando a corda da roldana. Ele se firmou e até relinchou, pois a posição que
estava era desagradável. Soltamo-lo das amarras e fui devagar com ele para
nosso sítio. Deixei-o em um piquete bem abastecido de capim braquiária. Um mês
depois ele já pastava em outros piquetes. Nunca mais o montei, mas saiamos
muito para passear. Eu sabia que um dia ele iria partir, mas sabia também que
faria tudo por ele sobreviver as suas dificuldades de velhice. O escotismo me
mostrou um novo caminho. O caminho da amizade do um por todos e todos por um.
Nunca esqueci o Chefe Jofre que fez questão de me entregar meu Cordão ali mesmo
onde tomávamos conta de Corisco.
Mamãe nunca voltou a andar.
Papai nunca a deixou só. Eu era suas pernas e aquele faz tudo que um bom
Escoteiro sempre é. Corisco dois anos depois morreu. O encontrei na Piquete
Sul, mas agora deitado. Ali mesmo o enterramos. A Tropa fez questão de
comparecer. Quando desceu para seu túmulo recebeu uma bela palma escoteira e um
bravôo. Fui Escoteiro por muitos anos. Hoje estou na faculdade da capital. Fiz
questão de escolher ser um Veterinário. Aprendi a amar os animais e serei por
eles um eterno guardião. Todos os feriados prolongados e nas minhas férias vou
correndo para meu lar no sítio que tanto amo. Aqui trabalho em uma farmácia e
tenho grandes amigos. O escotismo agora é difícil, mas ao voltar para onde
morei nunca deixei de visitar o Grupo Escoteiro onde sempre sou bem recebido.
Nenhum comentário:
Postar um comentário