Lendas
Escoteiras.
Antônia
No
portão deu para vê-la no Banco de madeira embaixo da Aroeira centenária. Sempre
foi assim. Ela não me olhava, fingia que não era eu, mas eu sabia que me
esperava assim como sempre esperou por toda sua vida. Não sei por que, mas ei
sentia por ela um estranho sentimento de amor e amizade. Cada ano que passava
notava que parecia estar em outro mundo e quem não a conhecia poderia pensar que
estava alheia a tudo e a todos. - Oi! - Ela de cabeça baixa dizia - Oi. -
Naquela tarde sem eu esperar me pediu com voz miúda, quase imperceptível. -
Tote, conte como foi o dia que você me viu pela primeira vez. - Ah! Tempos
demais. Por quanto tempo fomos amigos sem formalizar uma relação de amor? Mas
existia amor entre nós? Ela não era bonita e nem eu. Os chefes e os escoteiros
sempre diziam que tínhamos nascido um para o outro. Sorri para ela, mas ela não
sorriu. Nunca sorria.
Um
dia disse para ela que não poderia ficar sozinha em sua casa sem alguém ao seu
lado. - Antônia, você tem dificuldades de andar e movimentar. Sua voz vai aos
poucos sumindo. Afinal Antônia são 76 anos. Não pesa? Não sei se ela entendeu
que era um pedido de casamento, mas logo me disse: - Encontrei uma casa de
repouso, preciso de alguém que assuma por mim não só meus parcos proventos como
ser responsável pela minha vida. Não era o pior dos mundos. A casa era limpa,
os cuidadores pareciam ter formação e eram educados. Tinha um belo jardim e
próximo se podia ouvir o ruído de uma cascata. Era sim um lugar lindo com
pássaros voando, com beija flores parados no ar a procura do seu néctar para
sobreviver. Suas economias eu apliquei e dava para pagar toda sua despesa. Ela
sempre de cabeça baixa dizia: - Obrigado Tote. Ah! Vida que te quero vida!
No
dia que entrei para os escoteiros ela estava fazendo sua passagem para a tropa.
Não entendia nada e fiquei pensando na cerimônia que faziam. Assustei quando
ela me olhou com aqueles olhos negros enormes e não sorriu. Não era bonita,
nunca foi, mas se tornou irresistível para mim. Ficamos na mesma Patrulha.
Gritavam que éramos os Gaviões da terra do mar e do ar. Todos a cumprimentaram
quando fez a promessa e eu fiz o mesmo. Peguei em sua mãozinha pequena e meu
coração bateu forte. A vida me sorriu e acho que sorriu para ela também. Não
sei por que passei a protegê-la e ela me olhava com raiva. - Tote eu sou
escoteira, sei me virar! - Nos acampamentos não há deixava um só instante
sozinha. Aonde ela ia eu também ia. Quando foi a um Acampamento regional, eu
doente de Caxumba não pude ir. Chorei como chorei.
Os
anos foram passando, seniores pioneiros e um dia me convidaram para ser chefe.
- E ela? Ela não queria. Disse-me baixinho em meu ouvido naquele dia de São
Cristóvão na Praça da Padroeira: - Tote, não sirvo para mandar! Ficou
colaborando na diretoria. Nunca faltou a uma reunião mesmo no dia que sua mãe
morreu. Ela ficou só. Sempre estava lá na sua varanda conversando e contando
causos da nossa vida escoteira. Não entrava em sua casa. Ela sozinha e eu
também não ficava bem. Fazia questão de ser um cavalheiro. Para mim era
sagrado. Íamos ao cinema, ao circo e a vi sorrindo pela primeira vez com o
Palhacinho Jujú. Acho que ele despertou nela as saudades de sua infância
escoteira.
Tive
autorização para levá-la aos meus acampamentos. Meus escoteiros a amavam.
Faziam tudo por ela. Donato, Lomanto, Tarcísio eram frequentes em sua casa. Quando
fiz 68 anos não teve festa. Ela também. Resolvi ser um colaborador. Não dava
mais para acompanhar a meninada. Mas os anos são implacáveis. Eles passam mesmo
a gente não querendo. Um dia cheguei a sua casa bati e não tive resposta.
Entrei mesmo sem ser convidado e a encontrei deitada em sua cama. Assustei. Ela
não poderia ficar mais sozinha. Conversamos sobre a casa de repouso. Ela
aceitou sem reclamar. Fazia todas as semanas o mesmo trajeto de 30 km ida e o
mesmo na volta. Nunca iria abandoná-la. Ficávamos horas e horas lembrando
nossos tempos de escoteiros. Muitas vezes via seus olhos negros com um brilho
diferente, quem sabe uma pequena lágrima, mas onde estava o sorriso?
Foi
espontâneo. Nada preparado. Nunca tinha pensando em pedir a sua mão. Ela estava
chegando nos 88 anos e eu também. Ali embaixo do Pé de Aroeira pedi sua mão.
Ela sorriu. Deus meu ela sorriu! Casamos um mês depois na Casa de Repouso. Os
escoteiros de outrora lá estavam e muitos outros que sabiam de nossa amizade ou
mesmo do nosso amor. Vendi a casa dela e a minha. Resolvemos viver junto no
mesmo lugar. Não sei se foi um paraíso, mas nunca fui tão feliz e notei que ela
também. Um dia ao acordar a vi ao meu lado sorrindo. Procurei sua respiração e
não encontrei. Ela tinha partido para onde tinha vindo. Dois meses depois
também parti. Entre um sol radioso cercado de flores silvestres eu a vi embaixo
de um pé de Aroeira me esperando. - Oi! Ela disse. Oi! Sentei ao seu lado. Um
sol de primavera imperava reinante no céu. Um bando de andorinhas voejou em
nossa volta.
Gosto demais dela. Sei
que temos uma vida pela frente, uma eternidade para ficarmos juntos. Acredito
que será para sempre e se um dia retornamos a terra ou outro planeta, peço a
Deus que ela fique comigo. Deus me deu muita coisa e ela foi a melhor que
aconteceu em minha vida. Nunca esqueço Chico Xavier, ele dizia que viva como quem sabe que vai morrer um dia, e que
morra como quem soube viver direito. Amizade e amor só faz sentido se traz o
céu para mais perto da gente, e se inaugura aqui mesmo o seu começo. Mas, se eu
morrer antes de você, acho que não vou estranhar o céu. "Amar você e ter a
honra de ser seu amigo, já é um pedaço dele...".
Não podemos
pensar que perdemos uma pessoa querida e sim que ganhamos mais um anjo no céu.
Antônia foi nesta vida o melhor que me aconteceu.
Nenhum comentário:
Postar um comentário