Lendas escoteiras.
Narkis, o Lobo Solitário.
A
idade de Jonny Thorton era indecifrável. O que ele fazia para se manter sempre
jovem ninguém nunca soube. Quando o vi pela primeira vez estava com doze anos. Assustei
com ele. Fazíamos um jogo de tocaia e estava escondido na curva do Moinho e de
tanto esperar que alguma patrulha passasse para anotar os nomes cochilava.
Senti seus dedos tocando o meu ombro e quase cai do galho da árvore que estava
aboletado. – Lá vem dois deles disse – Olhei na Estrada e vi Manfredo e
Rosinaldo pé ante-pé tentando esconder dos índios selvagens. Eu era um índio
selvagem. Quando o procurei novamente ele sumiu. Sumiu como? Ali era o topo do
morro e dava para ver todos os lados. Oito anos depois entrando nos meus 21
anos fazia uma atividade aventureira No Rio das Esmeraldas. Calculamos eu e os
monitores percorrer 42 quilômetros a pé. Erramos feio. De 42 foi para 65
quilômetros.
O
plano era seguir a estrada do Boiadeiro até o Vale da Serpente. Calculei que
atrás do vale havia uma cadeia de montanhas onde era a nascente do Rio
Esmeralda. Se fosse verdade com uma boa jangada iriamos alcançar em um dia o
Rio Doce e de lá mais um dia até nossa cidade. Uma bela volta. Uma bela
atividade aventureira só com monitores. Eu era assistente do Chefe Laerte. Por
motivo de saúde não foi. Assumi e disse a ele que não se preocupasse. Após dez
quilômetros de caminhada uma chuva rala começou. Esta é a perigosa. Um velho
ditado dizia que se tens água e depois vento põe-te em guarda e toma tento. Dito
e feito, passamos boa parte do dia debaixo dela. Capas pequenas logo estávamos
todos ensopados. Avistei duas pedras na curva do Jacu onde se iniciava o Vale
da Serpente. Entrar lá com aquela chuva não era boa ideia. Uma chuvarada no
sopé da montanha e poderíamos sofrer consequências graves.
-
Olá Chefe! Ouvi alguém falando atrás de mim, virei e lá estava Jonny Thorton. –
Venham comigo, sei onde podem se abrigar. Com a chuva torrencial não disse nada
e o segui. Uma hora depois avistamos uma cabana. Entramos. Não era grande, mas
dava para descansarmos e até dormir um pouco até a chuva passar. Jonny Thorton
era um sujeito estranho. Usava uma espécie de macacão azul de brim mescla, acho
que feito por ele mesmo, sem gola e sem mangas e presa por cipó trançado.
Andava com um Mocassim feito por ele e quase não fazia barulho. Acedeu um fogo
no seu fogão de barro, colocou um caldeirão grande com agua. Em uma escada de
madeira retirou sobre a telha duas mandiocas e um pedaço de carne seca. Quer
saber? Nunca tomei uma sopa como aquela. Não sei se foi à fome ou o ambiente,
lá fora chuvoso, dentro um ambiente gostoso e em pouco tempo dormíamos a sono
solto.
Acordamos cedo. Não vi Jonny Thorton. Já
não chovia e o céu ainda nublado. Fizemos um conselho de patrulha e todos foram
unânimes em não desistir. Quando abri a porta da cabana um enorme lobo estava
em pé, serrando os dentes e voltamos correndo para a cabana. Enfrentar o lobo
não dava. Duas horas depois Jonny Thorton chegou. O lobo deu um enorme salto em
cima dele e ambos caíram no chão. Tinha que ajudar a quem nos ajudou. Com o
bastão sai pronto a usá-lo no lobo. – Não faça isto! Gritou Jonny Thorton. Ele
é nosso amigo! Parei e esperei. A patrulha ficou dentro da cabana. – Narkis!
Ele gritou, o Escoteiro é nosso amigo! O lobo me olhou de soslaio. Narkis!
Veja! Ele tem alimento como o meu. – Tirei do bornal um pedaço de linguiça e
dei para ele. Nunca em minha vida vi um lobo assim. A chuva voltou a cair.
Corremos para a cabana e o lobo foi atrás.
Mais uma
noite na cabana de Jonny Thorton. Desta vez em companhia de Narkis, o lobo
amigo. – À noite comemos um delicioso quitute de tomate misturado com peixe
cozido e uma farinha de milho de dar água na boca. Jonny Thorton tinha no vale
um belo restaurante e viveres que nunca iriam faltar. – A noite ele começou a
contar sua história. Nascera em uma pequena cidade às margens do Rio Mississipi
nos Estados Unidos. Era filho de Cabelos Longos, um índio da tribo Chicksaw.
Com nove anos subiu a bordo de um barco em Terra Blanca e foi aprisionado por
um capitão mau. Trabalhou a bordo por meses e escondido desceu em Port Gibson
mendigando por anos. Com 14 anos conseguiu emprego em um navio cargueiro de
ajudante de cozinha e veio parar no Brasil, em Vitória no Espírito Santo. A pé
subiu as planícies do Vale do Rio Doce que lembravam sua terra e descobriu este
lugar. Olhe Escoteiro, não sei quem é dono destas terras, mas daqui não saio
nunca mais.
Narkis eu o conheci quase morto próximo ao Lago Cinzento. Deram um tiro nele e
consegui tirar a bala. Ficamos amigos e ele sempre me salvou de poucas e boas.
Olhei para os monitores e subs, estavam de olhos arregalados na história de
Jonny Thorton. - Narkis, continuou – Já pôs para correrem muitos malfeitores
que fogem para este vale. Aqui não tem ouro e nem pedras preciosas, mas nunca
irei sair daqui. Isto não vai demorar, pois estou chegando aos meus setenta anos.
O Lobo deitou aos seus pés e nós fomos dormir. No dia seguinte o sol apareceu.
Agradeci a Jonny Thorton a acolhida. Ele sorriu. Narkis irá mostrar o caminho
até o Rio Esmeralda. Existe? Perguntei. Existe sim, posso apostar, pois eu
conheço! Partimos. O lobo sempre à frente. De vez em quando olhava para trás.
Uma hora parou com suas orelhas levantadas. Bem acima de nós eu vi uma enorme
onça parda. O dobro do peso do Lobo Narkis. Durante alguns minutos um olhava
para o outro. Pareciam conversar. Narkis fez um sinal para seguirmos. A Onça
Parda sumiu na floresta.
Atravessamos o Vale da Serpente sem nenhum tropeço. Se não fosse Narkis não sei
se teríamos conseguido. O Rio Esmeralda era majestoso. Fizemos uma bela Jangada
e tudo correu conforme os planos. Ficamos dois dias a mais que o planejado, mas
valeu. Norberto um dos monitores contou e escreveu toda a saga de nossa
aventura no livro de ata da patrulha. Nunca contou onde fica. Combinamos de
preservar a identidade do Jonny Thorton. Por vários anos ainda encontrei o Jonny
em alguns acampamentos. Um dia ele me procurou na sede do grupo e disse que ia
partir. Seu pai tinha falecido e deixou para ele de herança uma vasta terra
onde a tribo morava próxima a New Orleans. Ele era o único herdeiro. – E Narkis
o Lobo? Perguntei – Ele vive ainda e nunca dependeu de mim para sobreviver. O
tempo passou e uma lenda se formou no Vale da Serpente. Dizem que um Lobo
Solitário e uma Onça Parda dividem as noites de lua cheia e nenhum homem pode
se aproximar.
Verdade ou não eu sabia que a lenda era real. Pensei até em visitar Narkis,
agora chamado de Lobo Solitário. Desisti, pois ele tinha uma vida, uma
companheira e humanos nem sempre são bem vindos para estes animais. Vida longa
para Narkis o Lobo Solitário e sua amiga, uma Onça parda e que vivam para
sempre no saudoso Vale da Serpente!
Nota de rodapé: - Uma lenda? Pode ser. Narkis ficou no
tempo e tanto tempo faz que ele não deve existir mais. E Jonny Thorton? Nunca mais ouvi falar. Os
tempos são outros. Hoje isto não é mais possível me dizem alguns chefes. Concordo.
Não há mais rios caudalosos, não há mais lobos e nem alguém como Jonny para nos
alegrar nas noites chuvosas. Vida longa Jonny!
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