sábado, 26 de agosto de 2017

Micoçar o Charreteiro e o Comissário Escoteiro Viajante.


Lendas Escoteiras.
Micoçar o Charreteiro e o Comissário Escoteiro Viajante.
(uma história baseada em fatos reais)

                 Poderia dizer que é uma história quase real. Esta se passa em 1956, quando era Sênior. Um conto sobre Micoçar e o Comissário Viajante. Nunca esqueci aquele dia. Micoçar tinha uma charrete. Transportava pessoas. Naquela época eram chamadas de “freguês”. O termo cliente surgiu tempos depois. Se não me engano eram uns vinte charreteiros na cidade. Viviam disto. Quase não existia taxi na minha cidade. Só dois e um era um Fordeco azul desbotado. Os Charreteiros eram educados. Na estação da estrada de ferro formavam uma fila e ninguém atravessava o outro. Eu nos meus dezesseis anos conhecia todos eles. Micoçar era o mais conhecido por oferecer rosas brancas às moças que alugavam sua charrete.

                 Um dia ele apareceu na sede Escoteira. Ao seu lado um “freguês”, ou melhor, Chefe Escoteiro. Ficamos boquiabertos com a figura. Não era comum. Desceu uniformizado, garboso e se apresentou: - Sou o Comissário Escoteiro Viajante nesta região. Chame seu Chefe. Caramba! Nosso Chefe do Grupo era o Chefe João Soldado. Só ia a sede uma vez por mês. Sargento da policia militar. Gente boa, e meu segundo pai. Nossas reuniões não são como hoje. Sem aqueles programas de corre aqui corre ali. Tinhamos Bandeira, oração, e mais nada. Éramos duas patrulhas sêniores a Gavião e a Elefante. De vez em quando saia um jogo bolado na hora. O restante era treinamento de técnicas Escoteiras ou sentar na praça em frente para contar patacas. Na maioria das vezes estávamos navegando em alguma floresta, montanha ou explorando rios em um vale qualquer. Não sei se o que fazíamos era o certo, mas dos treze seniores só um tinha entrado como escoteiro os demais vieram dos lobinhos. Romildo Monitor pediu ao Chico para levá-lo a casa do Chefe João.

                  À tarde daquele sábado fomos chamados a casa dele. Disse que o Comissário quer fazer uma reunião para mostrar como se faz. Disse que ia mostrar como era uma reunião escoteira. Exigiu que eu estivesse presente. Olhei na “fuça” dele com sua exigência e quase mandei prendê-lo. Arrogante o moço. Eu não vou, mas vocês todos devem ir. Será domingo pela manha em frente à sede e atrás do Cine Pio XII. Havia um campinho de futebol onde nos reuníamos. Ele queria a tropa Escoteira, mas ela estava acampada na Caverna do Macaco próximo ao Rio Doce. No domingo lá estávamos. Ressabiados. Não sabíamos o que ele ia aprontar. Chegou com o Micoçar. Alugou a charrete por dois dias. Garboso chegou e disse: – Sou Chefe Escoteiro do grupo “tal” no Rio de Janeiro e nomeado Comissário Viajante. Vocês estão na minha área de atuação. Depois da reunião vou ensinar como fazer o registro na UEB. (famigerado registro que até naquela época existia).

                 Assim ele começou a reunião. Sério e sisudo. Tudo nos padrões que hoje conhecemos. Eu mesmo dei muitas sessões em cursos falando sobre isto. Não estava errado. Mas aprontou uma correria que nos deixou perplexos. Queria a todo custo fazer uma competição entre nós. Éramos amigos. Nunca gostamos disto. Nenhuma Patrulha era melhor que a outra. Até ai tudo bem. A missa acabou e um mundão de gente ficou nos olhando. Nesta hora ele resolveu cantar uma canção. Hoje muito apreciada e até adoro cantar. Mas naquela época? A “Piaba”. Sai, sai, sai oh piaba saia da lagoa! E quem entrava na roda dava uma umbigada e tinha que rebolar. O povo todo em volta dando gargalhadas. Todos vermelhos de vergonha. Na minha vez entrei rebolei um pouco. Micoçar que ria a valer e gritava baixinho; - Telirio! Telirio! Para quem não sabe esse coitado (desculpe o termo) era o único Gay conhecido da cidade. Quer comprar uma briga? Chame o outro de Telirio. Desisti. Romildo também. O povo morrendo de rir. O chefão gritando: - voltem todos. Não dispensei ninguém!

                 Coitado. E quem obedeceu? Ficamos ali de braços cruzados morrendo de vergonha por ficar rebolando. O pior que hoje quando lembro penso comigo como eram os tempos passados. Hoje adoro cantar a Piaba e rebolar. Risos. Ele saiu com Micoçar e foi direto a casa do Chefe João Soldado. Micoçar olhou para trás rindo e falou baixinho para mim – Telirio! Oh! Vontade de esmurrar o Micoçar! Só sei que ele falou cobras e lagartos com o Chefe João. Ameaçou fechar o grupo. Ameaçou tanto que o Chefe João o pegou pela camisa, o arrastou até a Charrete de Micoçar e disse – Suma! Micoçar, leve este lixo para o hotel. Se aparecer na minha frente de novo vou deixar vocês dois uma semana no xilindró! Dia seguinte o Chefe João nos contou toda a conversa. Falou cobra e lagartos. “Um bando de indisciplinados” (até certo ponto com razão). Exigiu um Conselho de Tropa e destituísse ambos os Monitores. Disse que enquanto não fizermos tudo isto o grupo nunca seria registrado.

                  Interessante. Nunca fomos registrados. Nosso grupo tinha mais de trinta anos de atividade e nunca fizemos registro. E quem precisava? “Belle Époque”, outros tempos. Uma Segunda Classe suada. Primeira Classe? Não era para qualquer um. Um orgulho do caqui curto e chapelão. Orientar com os ventos, com a lua, com as estrelas e as constelações. Pescar para comer na hora, armadilhas de pássaros para um bom assado. Comer mandioca do mato, aipim. Uma sopa de maxixe. Bananas verdes fritas na brasa. Bundinhas de Tanajura na panela estouravam como pipocas. Risos. Ficávamos anos adorando isto. Ninguém saia. Trinta e seis lobinhos onde só podia ficar vinte e quatro. Cinco Patrulha de oito onde deveriam ser quatro. Sênior? Este sim. Não era para qualquer um. Duas Patrulhas. Cidade pequena. Nesta idade a maioria dos rapazes estourava a idade e tinham de trabalhar. Serem aprendizes. Ainda não existia a Semana Inglesa. (parar aos sábados ao meio dia).


                   Outro escotismo? Pode ser. Escotismo no campo. Sem chefes. Só os monitores indo e vindo. Viver na natureza. Olhando as flores desabrocharem. Colocando os pés na água fria e dizer baixinho – Ah! Que delicia! Olhar o sol quando ia para o oeste e dizer – É para lá que vamos! Hoje não dá mais. GPS, ele lhe mostra tudo. O Chefe ali com você. Alguns fazendo tudo. Você não precisa pensar. Nem calcular mais. O Google lhe dá as respostas de tudo. Tabuada? Ficou na história. Um celular ou um smartphones para quando der uma parada na jornada entrar no Facebook. Ver os e-mails. Isto sim é moderno. Olhar os pássaros? Os animais? Descobrir novos caminhos? Quem sabe olhar a abóboda celeste e descobrir uma estrela desconhecida? Ver um cometa riscando os céus e saber de qual constelação estava vindo ou indo? Nada disto. Tudo mudou e para melhor. Nesta época moderna não cabe mais um Romildo, um Jessé, um Taozinho um Israel ou mesmo um Micoçar ou eu mesmo. Belos taxis hoje. Uma charrete só como peça de museu.

Nota de rodapé: - Eu e Micoçar ficamos grandes amigos. O tal Comissário Viajante alugou sua charrete por dois dias e não pagou. Foi embora e deu o cano. As patrulhas fizeram uma “vaquinha” e pagaram em suaves prestações. Sua charrete me levou a belos lugares por vales e rios desconhecidos. Charretes! Também foram engolidas pela modernidade. Pelos novos tempos! Uma história quase real. Sejam bem vindos!

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