Lendas Escoteiras.
Só o amor será minha herança.
Poucos
viram naquela manhã uma luz forte azulada que caiu mansa sobre a cidade de
Purgatório. Na bruma que se formou um jovem alto com o uniforme social dos
Escoteiros, atravessou a ponte de madeira com um sorriso contagiante. Tinha uma
forquilha na mão, uma pequena mochila e passos sem pressa em chegar. Era uma
cidade simples, pequena, onde havia muitos jovens por falta de oportunidade
profissional. Os mais velhos diziam que no passado havia muito amor, cortesia,
fraternidade e amizade entre seus residentes. Na rua vazia ninguém viu aquele
jovem calmo, com passadas curtas, olhando para frente com um sorriso nos lábios
cumprimentando a todos que encontrava. Ali ninguém notava ninguém. Purgatório
tornou-se uma cidade dispersa, Seus habitantes mudaram de hábito e agora viviam
para si sem pensar no seu próximo. Um poeta disse uma vez que era fácil sair
com várias pessoas ao longo da vida. Difícil é entender que pouquíssimas delas
vão te aceitar como você é e fazer feliz por inteiro. Difícil é ocupar o
coração de alguém. Saber que se é realmente amado.
O
jovem entrou na Rua da Tristeza, poucas casas e na última entrou. Ele sabia de
quem era. Desde que saiu há muitos e muitos anos pensou que nunca mais ele
voltaria. Ninguém o viu entrando em sua velha casa; - Quanto tempo se passou?
Melhor não pensar e seguir seu plano conforme planejou seu retorno. Sonhou em
fazer uma cidade nova, com sorrisos para todos poderem amar seu semelhante.
Abriu às janelas, as cortinas eram as mesmas, brancas de cetim com pequenos
babados enfeitando suas laterais. Os móveis estavam limpos, a cozinha também,
tudo asseado e bem cuidado. Fez um café no ponto. Bebeu uma pequena xícara com
gosto. Não estava com fome, deixou para fazer um lanche na sua volta. Estava
quase na hora. Entrou no quarto e seu uniforme de campo solto e bem dobrado estava
em sua cama. Bem passado como quando o usava. Dobrou o lenço devagar. Na parede
viu o porta-chapéus com o seu acondicionado. Os sapatos engraxados e os meiões
preparados estavam na cadeira de vime ao lado.
Não precisava correr. Sabia a
hora que ia iniciar a contenda, mais conhecida como reunião. Ele fora um deles,
e agora pensava no passado tão distante onde buscou um novo caminho e até hoje
nem sabe que rumo tomou. Sentiu o mesmo vento soprando, sem saber se ia para o
norte ou para o sul. No seu subconsciente achava que não teria mais volta.
Vestiu seu uniforme como no passado. O pequeno relógio de seu pai abraçava a
parede verde clara da saleta da entrada marcando quinze para as duas da tarde.
Tempo suficiente para ele chegar e resolver a contenda que seu destino o levara
de volta. Na Rua da Angustia ninguém olhou para ele. Na Praça dos Piedosos não
viu ninguém. Chegou à sede sorrindo, e ninguém olhou para ele. Para muitos ele
sempre esteve ali. Não era nada não era ninguém. Levantou as mãos e orou. Pediu
a Deus em uma prece profunda que mudasse o coração da irmandade, que pensassem
mais nos outros que em si. A cidade precisava mudar. Aqueles sorrisos de
outrora, aqueles apertos de mãos, aqueles abraços tão gostosos não podiam ficar
armazenados na caverna do esquecimento.
Ele sempre soube que o começo de tudo estava ali, naquele Grupo Escoteiro onde
se acreditava em uma Lei, onde se dizia que há honra estava acima da vida e da
morte. Onde a palavra tinha um dom de ser acreditado, pois a grandeza destas
máximas não consiste em receber aplausos, mas sim em fazer por merecer. Todos
se dirigiram a ferradura. Hora do Cerimonial. Hora da reunião da família
escoteira hora da bandeira ressoar no ar. Ele ficou junto à chefia, não houve
sequer um abraço um aperto de mão. Ele notava os olhos tristes, faces
angustiadas, enrugadas, sorrisos tortos, palavreado difícil para entender. Os
lobos tentavam sorrir e não conseguiam. As patrulhas desleixadas, os seniores a
conversar entre si. Os chefes não se olhavam. Ali não havia amor, amizade e os
que estavam presentes eram como se fossem mais fantasmas escoteiros que não se
conheciam.
A bandeira foi içada. Não houve canções, hinos nada. Faltava o calor humano.
Faltava um olhar carinhoso, faltava uma voz que unisse a todos outra vez. Ele
pediu a palavra. O olharam como se fosse um estranho. E ele era sim um estranho.
Humildemente foi ao centro da ferradura, olhou nos olhos cada um para
transmitir amor. Estava difícil... Olhou para o céu e fez uma oração ao Senhor
seu Deus: - Dá-me Senhor: um coração vigilante, que nenhum
pensamento vil o afaste de ti; um coração nobre, que nenhum sentimento indigno
o rebaixe; um coração reto, que nenhuma maldade desvie; um coração generoso
para servir. Senhor que cada um de nós possa amar uns aos outros, que possamos
aprender a sorrir, a cantar a dizer aleluia Senhor por uma graça alcançada.
O sorriso de um Lobinho se espalhou no ar, os gritos de patrulha eram
gostosamente gritados pelos escoteiros de uma maneira exemplar. Os seniores
davam risadas e abraçavam-se entre si. Pioneiros e chefes contavam
“causos” sorrindo e as guias aplaudindo. Um Chefe veio correndo abraçar outro
Chefe chorando e pedindo perdão. Um zum zum se espalhou como o vento que antes
soprava sem destino. Ele sorriu e olhou para o céu. - Obrigado meu Deus pela
graça que me destes. Permitiu-me fazer o meu melhor possível e dar o meu melhor.
Ensina-me sempre que o dever, longe de ser um inimigo, é um amigo. Faça-me
encarar até a mais desagradável tarefa, alegremente. Dê-me fé para compreender
o meu propósito nesta vida e abra minha mente para a verdade, e enche meu
coração com amor. – Era hora de partir, ele sabia que ali tudo havia sido
alterado. Ele sabia que a cidade iria acompanhar os novos ventos de mudança.
Era hora de voltar.
Abraçou a cada um em particular. Seu aperto de mão eram como fagulhas de amor e
paz a jorrar no coração de cada um. No portão deu seu último olhar. Uma Lobinha
sorria e dizia adeus. Era um novo adeus que sua alma precisava. Entrou em sua
casa e uma pequena lágrima apareceu em sua face até desaparecer no chão que ele
pisava. Era hora de partir, fechou as janelas, beijou um pequeno crucifixo que
estava no quarto de sua mãe. Lembrou-se do sorriso que ela sempre lhe deu antes
de partir. Saiu devagar pela Rua da Amizade, viu outra placa, tinham trocado.
Passou pela praça e viu que se chamava Praça do Amor. Havia cheiro de perfume
no ar, rosas sorriam quando passavam. Na praça viu uma multidão a cantar. Na
saída uma nova placa dizia: - Bem vindos a Portal da Esperança. Purgatório
ficou no esquecimento. Um clarão azul brilhante o levou de uma só vez. Com um
pequeno sorriso lembrou-se das palavras de um poeta: - Ainda
que haja noite no coração, vale a pena sorrir para que haja estrelas na
escuridão...
Nota de rodapé: -
Ele surgiu do nada, a
cidade perguntou quem era e ninguém sabia responder. Assustaram-se quando se
dirigiu a Sede do Grupo Escoteiro. Ninguém o conhecia, era um estranho sem
nome. Mas quando partiu deixou para traz um raio de esperança. Era como se
tivesse escrito no céu que ainda que seja noite em seu coração, vale a pena
sorrir para que haja estrelas na escuridão... Uma bela história mística e cheia
de espiritualidade.
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