segunda-feira, 17 de setembro de 2018

Lendas Escoteiras. A última página do adeus.



Lendas Escoteiras.
A última página do adeus.

Nota -- Tem gente que passa em nossa vida, leva um pouco de nós mesmos, e deixa um pouco de si mesmo. Há os que levam muito, e há os que deixam muito, mas não há os que não deixam nada! – Raquel levou nossas saudades, mas deixou exemplos para nunca mais serem esquecidos.

                      Olhe eu nunca há esqueci. Seu sorriso, seu jeito matreiro de conquistar e fazer amigos, sua lealdade e sua honradez eram de tirar o chapéu. Não sei por que partiu. Se houve um motivo no grupo nunca fiquei sabendo. Todos ficamos consternados com sua partida. Partiu sem nenhuma explicação e assim como chegou se foi. Não despediu de ninguém. Vimos algum de estranho em seus olhos no sábado anterior. Parecia que chorava por dentro. Ela tinha estilo, pose de rainha, mas não era antipática démodé ou arrogante. Era simples, conquistava pelas palavras, pelo carinho pelo abraço e seu Sempre Alerta era demais! Chegou sozinha sem filhos a tiracolo, maneira corriqueira que sempre acontece com pais que chegam para ver e sentir onde seus filhotes estão e verem se vale a pena.

                 Raquel foi diferente. Adentrou na sede e disse que veio ajudar. Foi aceita sem maiores exigências. Disse que não teve a oportunidade de tornar seu sonho de ajudar os jovens e ali no escotismo poderia colaborar. Quando a conheci vi que era uma senhora de classe. Porque estava ali e sozinha? De onde tinha vindo? Quem seria? Acreditar no seu altruísmo no seu amor ao próximo, na benevolência e no seu bom coração sem nada saber de suas origens era um desafio para todos nós. Dizem que a ajuda ao próximo sem buscar qualquer recompensa é notável indicador de elevação moral, que eleva o ser humano, fazendo dele um ser superior digno de ser seguido. No Grupo todos nós ficamos encantados com ela.

                   Na sede ou no campo todos os jovens do grupo ficavam como abelha no mel em volta dela. Contava lindas histórias. Cantava lindamente. Era exímia em jogos e a criançada escoteira aplaudia. Os chefes pensavam se poderia existir alguém como ela. Nunca ouve ciúmes, maledicências, despeito ou mesmo uma rivalidade. Em meus pensamentos pensei que seria uma Santa que desceu do céu para ajudar nosso escotismo tão necessitado de pessoas assim. Não entrou em nenhuma sessão Escoteira. Chegava meia hora antes e saia meia hora depois. Neste tempo distribuía sorrisos, conversava motivando a todos, recebia pais e visitantes, encaminhava os novos para o Diretor Técnico e nunca interferiu nas sessões quando de suas atividades. Os chefes sempre a procuravam para um jogo, uma historia ou um conselho.

                  Todos a chamavam de Raquel. De que? Nunca soubemos e nunca ela falou. Ninguém sabia onde morava, onde trabalhava se tinha família ou não. Isto se tornou tabu para todos, pois não queriam ofendê-la e nem privar de sua amizade. Se ela não contou é porque não queria contar. Um dia procurou o Chefe e disse para ele que queria fazer a promessa. Todos se alegraram. Ela chegou naquele sábado esplendidamente uniformizada. Sua performance era incrível e seu garbo melhor ainda. Foi uma promessa inesquecível. Após o cerimonial vieram antigos Escoteiros, ex-Escoteiros, chefes do distrito e da região, pois ela conquistou uma legião de fãs. Ela mesma ofereceu um coquetel. Garçons de smoking serviam os mais gostosos salgados e quitutes de dar água na boca.  Eu a via pensando que ali estava seu mundo escoteiro, mas e seu mundo particular?

                        Nunca ficou um dia, um minuto um segundo sem o uniforme na sede e nas atividades Escoteiras. Ficamos boquiabertos quando disse que conseguiu um avião para levar todos do grupo para um Jamboree Nacional. Um avião? Quem ofereceu? Ninguém perguntou. A confiança nela era tremenda. Lá foram todos na aventura que marcou os jovens e adultos do Grupo Escoteiro por toda a vida. Olhe eu posso garantir que nunca faltou, nunca chegou atrasada e em menos de um ano nosso Grupo Escoteiro se tornou o mais conhecido da cidade. O prefeito e outras autoridades nos davam o maior apoio. Meu Deus! Quem era essa mulher? Porque ninguém sabia de nada de sua vida? Como ela conseguiu esconder de todos seu curriculum pessoal? Nada vi na mídia nada que pudesse desaboná-la. 

                      Foi um desastre aquela reunião do sábado. Chovia ninguém se preocupou com a chuva. Todos esperavam a chegada de Raquel com seu sorriso fantástico, um anjo dourado que Deus presenteou ao Grupo Escoteiro. Os lobinhos, Escoteiros, seniores guias e chefes entravam aos borbotões pelo portão de aço, pintado de branco, para receber um sorriso e um aperto de mão de Raquel. Onde estava ela? Ninguém sabia. Não veio? – Até agora não, disse alguém. Ficaram o tempo todo em reunião, mas sempre olhando para o portão vazio. Uma calmaria que assustava. Raquel não veio e nem nas três seguintes. O Grupo Escoteiro sentiu na pele aquela ausência. Ninguém queria acreditar no pior. Sempre sonhavam com ela adentrando com aquele sorriso dizendo: Sempre Alerta!

                 Raquel desapareceu. Ninguém sabia onde morava, ninguém tinha seu telefone, ninguém sabia onde trabalhava e nem as autoridades que ela fez amizade sabiam de sua vida particular. O coração partido, os olhos lacrimejados mostraram um Grupo Escoteiro à deriva. – Muitos diziam alto com rancor o porquê daquele abandono. Outros reclamavam por ela oferecer amor e carinho e desaparecer como uma nuvem levada pelo vento. Lembro que eu mesmo chorei com sua partida. Anos depois sem querer vi na internet uma noticia que me estarreceu. Era de 40 anos atrás. Eu não podia entender e compreender. – Dizia: -  

- Dentre os mais de cento e oitenta passageiros que morreram na queda do Avião da Swissair ocorrido hoje, próximo a Kaduna, uma figura simples que labutava no Hospital St. Nicholas na capital da Nigéria, a Irmã Raquel, considerada uma Santa vai deixar saudades. O Vaticano estuda até hoje sua canonização. Seu trabalho na cruz vermelha na Monróvia, Libéria vai deixar uma lacuna difícil de ser preenchida. O Padre Romulo sempre dizia que ela partiu para estrelas para nunca mais voltar! Olhei a foto com atenção. Mesmo preta e branca e opaca era dela, da nossa querida Chefe Raquel!

Existem chefes que deixam saudades. Existem pessoas que marcam e ficam no coração da gente para sempre. Cada um de nós conhecemos pessoas assim. Sei que Raquel nunca mais iria voltar. Sua missão havia sido cumprida. Partiu para outra missão, pois uma alma evoluída não pode ficar no mesmo lugar. Sempre guardei lembranças enormes de Raquel em meu coração. Nunca vou esquecer seu sorriso, sua voz seu jeito gostoso de ajudar e que transformou o Grupo mostrando que a fraternidade não tem hora e nem lugar!

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