Lendas Escoteiras.
A morte de João Liborno teve uma festa no céu.
Quer saber? Eu
conheci João Liborno. Tudo bem, eu sei que muitos que o conheceram se
arrependeram. Mas eu não. Disseram-me que ele era prepotente, não sabia abaixar
a cabeça, se achava o dono do mundo. Nunca pensei assim, quem sabe por que
entrei em sua alma, seu coração e sua vida. Não pensem que tenho premonição,
conhecimentos de psicologia, que sou um adivinho ou um religioso a ponto de
conhecer alguém por dentro. Mas João Liborno tinha algum especial. Seu olhar.
Olhar? Podem me dizer o que quiserem, ele era mesmo alguém especial. Mal
educado eu sei que era. Valente então? Sempre tinha uma resposta na ponta da
língua, mas meu Deus! Que faria o que ele fez? Juro que já vi igual, mas melhor
não. Quando o Prefeito Zeca do Som sabia que ele estava na prefeitura a sua
procura se escondia no banheiro. Quando o delegado Jacutinga era informado que
ele estava aprontando, pegava sua varinha e ia pescar no córrego do Cavalo
Doido.
Tudo porque
detestava um não. Achava que todos deviam ser como ele. Afinal o que João
Liborno fazia? Nada que as autoridades deviam fazer e não faziam. Ele recolhia
os pedintes, os enfermos jogados na rua e os levava para seu galpão. Isto mesmo
ele com as próprias mãos fez um galpão. Não tão grande, mas com a nossa ajuda e
dos pioneiros dava para quebrar o galho. Dizem que seu galpão era igual coração
de mãe, sempre cabe mais um. Nunca passei por lá e vi ele vazio. Sempre cheio
de gente. Gente? Indigentes isto sim. Doença de chagas, doentes de pulmão,
doentes de AIDS, pobres que não tinham onde dormir. João Liborno nunca foi
médico e nem enfermeiro. Dizem que ele era um excelente Chefe Escoteiro até que
um dia o mandaram embora do grupo que ajudava. E quer saber? Foi tudo futrica
fofoca da oposição. Não tem no escotismo? Oposição? Pois sim que não tem.
João Liborno foi
Escoteiro sênior e pioneiro. Assumiu a Tropa Sênior em meados de abril de 1956.
Os seniores faltavam pouco carregá-lo de tão contentes. O danado nem ligava,
mas pegava os seniores e ia sempre onde ninguém nunca foi. A inveja começou aí.
O disse me disse das comadres no Grupo Escoteiro. – Um dia ele vai trazer nos
braços alguém morto, dizia uma, não duvido dizia outra. Mas João Liborno tinha
feito as pazes com Deus. Dizem que hoje em dia não tem mais comadres nos Grupos
Escoteiros. Sei não! – Tonico Caroço que o diga. Chefe da Tropa Escoteira
exigiu que todos fossem tratados igualmente e ninguém iria receber nenhum
distintivo se não o merecessem. O Pai de Constantino ficou uma fera. Procurou o
Chefe Tibúrcio e disse – Ou ele ou eu! O que houve Natalino? Meu filho Chefe, o
senhor sabe que me mato aqui no grupo, faço tudo, levo para os acampamentos em
minha Kombi, pago em dia minhas mensalidades e agora ele está negando dois
distintivos e cinco especialidades ao meu filho.
O caldo cresceu e
entornou. A chefaiada dividida. Na reunião de chefes do grupo metade pedia sua
saída, a outra metade dizia que se saísse sairia com ele. Melhor procurar o
distrital. João Liborno não gostava de pais que se intrometiam na Tropa ou Alcatéia.
Mas Natalino era Juiz de Direito da cidade e diziam que seria o futuro
prefeito. Dizem que politica e escotismo não se misturam, mas ali em Pau D’Alho
era diferente. João Liborno foi chamado. O distrital já o tinha encravado na
garganta. Quantas vezes aprontou? Quantas vezes criou caso por uma simples
questão de semântica? Agora o prefeito Bafudonça lhe telefonando todo dia
porque ele fez um galpão e lá esta alojando a “peste negra” da cidade. Não
tinha jeito. Mandou uma carta para João Liborno avisando que um processo estava
em andamento e enquanto isto ele estava suspenso de suas funções. Dois dias
depois recebeu uma resposta de João Liborno. Duas palavras somente. Nada mais.
– “Vá à merda”! Foi à conta. A carta foi xerografada. Deus e o mundo recebeu
uma copia. A UEB não se manifestou. Disse ser problema da região e do distrito.
João Liborno
todos os sábados impreterivelmente às duas da tarde já estava na sede
Escoteira. Isto sem contar a ultima excursão que fez com os seniores que ficou
na história. Alugou dois carros de bois do Chico Landi, um fazendeiro amigo dos
Escoteiros e com uma dúzia de bons Guzerá lá foi ele com seus seniores para
fazerem a mais aventura de suas vidas. Japielton me contou que nunca se
divertiu tanto. Adorava o lamento ou canto que as rodas faziam. Todos
aprenderam a colocar a canga, o canzil, a arreia, o cabeçalho. Manuseavam com
perfeição a cheda, a cantadeira, o cocão, o fueiro, e quando não estavam
assentados na mesa lá ia eles se revezando com a vara do ferrão a gritar: -
Vamo Risoleta vai que vai Tira Forno. Foram quinze dias inesquecíveis pelas
estradas e serras do sertão. Quando voltou lá estava na sede o distrital e dois
soldados. – Fora, fora, você esta exonerado. Me entregue seus distintivos e
uniforme. João Liborno ficou branco. Ia falar um palavrão, mas deu as costas a
todos e foi embora.
Não voltou
mais ao grupo. Agora se dedicava aos seus doentes e os sem sorte na vida. Não
dava sossego a ninguém. Sempre pedindo para seus pobres. Claro que o galpão não
acomodava mais ninguém, mas João Liborno não desistia. Nas eleições de novembro
ele disse a um candidato a governador: - Me ajuda com meus pobres? Doutor
Pasquacio foi eleito. Não esqueceu o pedido de João Liborno. Mandou fazer um
prédio enorme, com todas as condições para ser o melhor hospital da cidade.
João acompanhava as obras sempre sorrindo, claro que os seniores não o abandonaram.
O dia da inauguração chegou. João Liborno colocou seu uniforme caqui e seu
Chapelão, e lá foi ele tomar posse do que era seu. Coitado do João. Nem o
deixaram entrar. Ficou estupefato com a traição do Presidente Pasquacio. Foi
para casa tão triste que resolveu fazer o ato que nunca teria feito. Afinal ele
era um bom Escoteiro, um bom companheiro. Dizem que os seniores o ajudaram, eu
não acredito.
Não era duas
da manhã e o Hospital novo estava em chamas. Não havia ainda bombeiros naquela
época. Ninguém sabe o que aconteceu. Os seniores não moveram uma palha para
ajudar a apagar o fogo. Tudo foi destruído. Todos já sabiam que só podia ser
João Liborno. Mas ninguém podia provar e ninguém o viu de novo na cidade. Só
pode ter fugido. Ao fazer a limpeza das chamas encontraram seu corpo. Em uma
placa de metal ele deixou escrito. Escoteiro eu fui. Sua filosofia morou em meu
coração. Mas que Deus me desculpe, não suporto a traição. Quem com ferro fere
com ferro será ferido. Dizem eu não sei se foi verdade que mesmo com o hospital
destruído o Prefeito Bafodonça decretou três dias de festividade. Ele mesmo fez
uma festança em sua fazenda. Livre dele era ficar feliz para sempre!
No auge
da festa, uma fumaceira tomou conta, a prefeitura e a casa sede da fazenda
ardia em chamas. Todo mundo corria para todo lado. Não podia ser João Liborno.
Ele estava mortinho da silva. Mas era ele mesmo o carvão que disseram ser o seu
corpo? Quem seria o culpado? Decida você leitor.
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