Lendas
Escoteiras.
O Cacique Itagiba, aquele que tem o braço forte como
pedra.
Acordei cedo. Uma rotina de um Cabo
Corneteiro na 4ª Brigada de Infantaria em Juiz de Fora. Um soldado me avisou
que o Capitão Barbosinha queria falar comigo. Ordens superiores não se
discutem. Apresentei-me a ele em sua sala as sete da manhã. – Cabo, recebi este
telegrama. Entregou-me e li. Dizia: – “Meu irmão em breve irei passar para o
outro lado do oceano. Não quero ir antes de me despedir de você”. – Cabo o que
significa passar para o outro lado do oceano? – Capitão, significa que meu
amigo o Cacique Itagiba está morrendo e não quer ir antes de despedir de mim –
Os índios Botocudos quando estão para passar para o outro lado se preocupam com
suas três almas na hora da morte. Segundo seus ancestrais,
eles têm três almas: a nhe’enguê ou nhe’em, a alma boa
espiritual, que vai para o Além quando a pessoa morre, não afetando os vivos; a
anguêry, a alma animal, responsável pelas más inclinações e que fica na terra
por um tempo depois da morte, assombrando os vivos; a avyu-kuê, a sombra, uma
cópia imperfeita da pessoa, permanecendo nos ares e não incomodando ninguém. A
doença é a ausência temporária da nhe’em, da alma boa. A morte é a saída
definitiva dessa alma. O sonho é a saída nhe’em para esse outro mundo.
O Capitão Barbosinha sorriu. Ele me conhecia. Sabia da minha lealdade e das
minhas aventuras escoteiras. – Tem uma semana para ir e voltar. Às nove da
manhã consegui uma carona em um Posto Shell. Tive sorte. Um caminhoneiro ia
para Teófilo Otoni se prontificou a me levar. Estava com o uniforme de campanha
do exército. Às onze da noite estava em casa. Contei aos meus pais o que
aconteceu. Um banho, vesti meu uniforme e parti para a estação ferroviária. Duas
da manhã e o Nonô Chefe da Estação me disse – Vado, as três e meia passa um trem
de carga para Aimorés. Você pode pegar uma carona. Não deu outra. Tanta sorte e
o melhor Dedé Peito de Pato era o maquinista. Fora Escoteiro sênior e pioneiro.
Cheguei a Crenaque as cinco da matina. O dia clareava. Não consegui um barco para
atravessar o Rio Doce.
Fazer uma jangada demoraria demais. O rio estava calmo e as águas baixas.
Escolhi um local onde havia uma grande pedra no meio do rio. Cada braça uns 80
metros. Tirei o uniforme e enrolei em esfoladas de bananeira minha tralha e
amarrei as costas. Iria atravessar a nado. Não foi difícil. Às oito da manhã
avistei no alto do morro do Grilo a Aldeia dos Pataxós, remanescentes dos
Botocudos e Aimorés. Nada mudou. A mesma aldeia miserável do passado. Os índios
ali não tinham vez. A FUNAI nunca ajudou. Parei para descansar, não queria
chegar com ar de cansado. Precisava motivar meu amigo o Cacique Itagiba. Eu
sempre disse que o sorriso é um remédio dos deuses. Meus pensamentos voltaram
ao passado, cinco anos antes. Era Escoteiro passando para Sênior. Nos
Pintassilgos me sentia bem. A maioria fora Escoteiro e muitos eu conhecia muito
bem.
A Tropa muitas vezes pensou em visitar
os índios do vale do Rio Doce. Sabíamos que de uma população de mais de cem mil
índios, hoje não eram mais que uns três mil. Havia quatro aldeias no vale do Rio
Doce. Em Crenaque, em Conselheiro Pena, em Aimorés e a última em Colatina. –
Porque não vamos visitar a de Crenaque? É perto e poderemos conhecer mais a
história deles. Todos aprovaram. O Chefe deu sinal verde. Uma época que os
chefes confiavam. Em uma sexta a tarde na estação ferroviária pegamos o Trem
Rápido para Vitória. Não pagávamos passagem. Tínhamos passe livre na ferrovia
Vale do Rio Doce. Às seis da tarde chegamos a Crenaque. Chegar à Aldeia a
noite? Não era uma boa ideia, mas poderíamos atravessar o rio. Um menino de uns
doze anos se ofereceu com a canoa de seu pai. Juntamos uns tostões e demos a
ele quase doze reais em dinheiro de hoje.
No alto do morro do Grilo
avistamos a aldeia. Nenhuma iluminação. Algumas lamparinas e mais nada. Casas
de alvenaria. – Mas eles não deveriam ter Ocas? Eu iria averiguar. – Armamos
duas barracas e dormimos como sempre. Sem medo e sem receios vivendo somente
nossos sonhos de jovens escoteiros seniores. Acordamos com o sol nascendo. Na
frente da barraca uma dezena de índios na maioria jovens como nós. Eles
sorriam. Nenhum fazendo gestos de maldade. Levantamos acampamento e metido a
entendido disse um bom dia no idioma tupi-guarani. Eles riram a valer. Foi
então que um jovem forte e atlético, vestindo um calção azul e sem camisa nos
convidou para visitar a aldeia e conhecer seu pai o Cacique Upiara e sua mãe a
índia Poranga. Foi a primeira vez que conheci o Cacique Itagiba. Entramos na
aldeia e todos sorriram ao nos ver. O Cacique Upiara muito educado. Com seu pequeno
cocar de duas penas ele se orgulhava, uma de um Azulão Vermelho e outra do
Uirapuru. Só os valentes da tribo conseguiam tais penas.
Ficamos lá até domingo. Conversamos muito com
eles e apesar de não entender sobre FUNAI, indigenistas e piratas de bebidas
alcoólicas aprendemos muito. Um povo sofrido. As terras que o governo lhes deram
foram invadidas diversas vezes. A caça desapareceu. Eles plantavam mandioca e
muitas vezes era seu único alimento. Os homens da FUNAI não eram honestos. Eles
viviam como podiam, mas ainda tinham o orgulho dos seus antepassados. Entre os
indígenas não há classes sociais e todos tem o mesmo direito e o mesmo
tratamento. O pequeno pedaço de terra que ainda tinham pertencia a todos. Quem
conseguisse alguma caça e ou uma boa pesca era dividido com todos. Cada casa
morava oito ou doze famílias. Até mesmo o Cacique Upiara e sua esposa a índia
Poranga moravam com mais oito famílias.
Ficamos amigos. Muitas vezes fui só como se diz a “escoteira”. Juntos fizemos
belas aventuras. Caçamos uma Jaguatirica só com armadilhas. Ficávamos horas na
pedra do Açu junto ao rio Doce tentando pescar uns dourados. Fizemos uma
jornada até a Lagoa dos Macacos muito longe da aldeia. Uma lagoa enorme e nunca
tinha visto tantos peixes. Aprendi a gostar do Cacique Upiara e a Índia
Poranga. Fiz amizade com o Pajé Jurecê. Quatro anos depois fui servir a Pátria
em Juiz de Fora. Sempre mantendo contato com Itagiba pelo correio. Encontrei Itagiba
deitado em um catre de folhas de bananeira. Ele já sabia que eu estava
chegando, seus guerreiros avisaram. Levantou com dificuldade e ficou em pé com
a ajuda de sua mulher a índia Ibotira. Abraçou-me fortemente com os olhos
cheios de lágrimas. Não me contive e chorei também. Ficamos ali a falar do
passado, e sua tristeza com o futuro da aldeia.
Ele acreditava que poderia reencarnar. Um dia me disse – Sabe Vado Escoteiro
quando eu reencarnar novamente quero ser seu irmão. Quero estar sempre ao seu
lado. Morreu a noite sorrindo e olhando para mim. Voltei no dia seguinte do seu
sepultamento para o quartel. Naquele sábado do retorno, na hora do apagar das
luzes, toquei em meu clarim o toque de Silêncio mais triste que um dia toquei
em minha vida. Para dizer a verdade as notas do clarim se misturaram ao sabor
das minhas lágrimas que caiam harmoniosamente. Até mesmo o Sargento da Guarda
me olhou assustado. Ele não conhecia a história, mas sua experiência com
corneteiros sabia de antemão que uma bela história de amor e amizade tinha
acontecido. Itagiba ficou na minha memória por todo o sempre. Eu sei que um dia
vamos nos encontrar, pois nosso caminho nos levava ao mesmo lugar. Eu também
iria morar um dia do outro lado do oceano.
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