Lendas Escoteiras.
Coletor um saudoso Escoteiro e seu violão mágico.
Eu me lembrei dele hoje. Não sei
por quê. O frio estava acabando e o calor chegando. Havia dias que não eu não cantava
nada. Ou melhor, quase não canto mais, pois a tosse não deixa. Se não me engano,
pois minha memória não anda boa nos o chamávamos de Coletor. Porque este
apelido eu não sei afinal Coletor lembra os templos bíblicos onde os Coletores
de Impostos eram odiados. Alguém um dia me disse sorrindo que o imposto é a
arte de pelar o ganso fazendo-o gritar o menos possível e obtendo a maior
quantidade de penas. Risos. Ninguém gosta de pagar impostos. Seu nome
verdadeiro era Cristófamo. Nome que eu nunca tinha ouvido falar e nunca
perguntei a ele porque o batizaram com este nome infernal. Melhor mesmo
chamá-lo de Coletor.
O moço era um craque no violão. Como tocava.
Era ele aparecer e uma grande roda se fazia. Não tinha uma bela voz, mas não
precisava. Seus dedos deixavam a todos embasbacados. Coletor era um
homenzarrão. Grande mesmo. O violão nos seus braços se tornava parte do seu
corpo. Parecia que o violão gostava dele, pois se olhasse bem o violão estava
sempre sorrindo, embalado por aqueles dedos especiais. Ele entrou para nossa
patrulha entrando nos seu quatorze anos. Logo se tornou um de nós pela sua
simpatia e esforço. Coletor era negro e forte como um touro. Naquela época
acredito que tinha mais de um metro de oitenta. Não sabíamos de suas qualidades
e seu domínio com um violão. Perguntou-me se podia levar seu violão nos
acampamentos. – Claro, eu disse. Mas só pode tocar nos tempos livres. Ele
enrugou a testa e perguntou – O que é tempo livre? – Eu ri dele, pois sabia que
no campo nosso tempo livre era para trabalhar.
Qual não foi nossa surpresa quando a noite na Conversa ao Pé do fogo que
sempre fazíamos todas as noites ele pegou o violão e começou a dedilhar.
Naquela época o bom violonista tocava sempre com maestria o Luar do Sertão, As
Rosas não Falam, Prece ao vento, Para dizer adeus, Chão de estrelas e tantas
outras. Deitados em volta da pequena fogueira e olhando para o céu estrelado
esquecíamo-nos de tudo. Quando Coletor aprendeu as músicas escoteiras foi um
sucesso. A escoteirada vivia em sua casa. Ele nunca disse não. Tocava com
alegria de saber que os ouvintes apreciavam sua técnica. Afinal quem não gosta
de ouvir lindas músicas escoteiras? Ou quando ele tocava as suas prediletas? Eu
sonhava o dia que ele pudesse gravar em um disco de vinil aquelas músicas que
só seu violão tocava como se estivesse cantando. Já tinha em minha casa o disco
do Trio Irakitan que tantas alegrias me trouxe, mas achei que Coletor era
melhor no violão.
Em
Conselheiro Pena fizemos um acampamento de grupos, uma época que não tínhamos
distritos, mas uma grande amizade entre todos. Eram quatro Grupos Escoteiros.
Na primeira noite, no nosso campo de patrulha as outras ouviram o dedilhar do
violão do Coletor. – Dá licença? E assim foram chegando e sua fama se
espalhando. No fogo de conselho foi ovacionado de tal maneira que no debandar
ninguém debandou. Ficaram lá ouvindo as maravilhosas músicas de Coletor.
Eu só conhecia sua mãe. Ele nunca falou de seu pai. Perguntei ao
Farolete, um sênior vizinho dele e pelo seu olhar vi que não iria contar nada.
Só fiquei sabendo no dia seguinte da tragédia. Seu pai um bandido famoso veio
visitar o filho e a esposa. A Polícia de Captura estava de campana e uma
saraiva de tiros se abateu sobre à casa de Coletor. Morreram todos. Nunca se
cobrou nada das autoridades, uma época que a Policia de Captura não dava
satisfações a ninguém. O enterro do Coletor e sua família foi a noite. Para
evitar palavrórios contrários decidiram que ninguém poderia participar. Ficamos
de longe com olhos cheio d’água e chorando de fazer dó. Só espiando no alto de algumas
árvores próximas ao cemitério. Durante uma semana dois policias ficaram de
guarda na porta do cemitério. Ninguém podia visitar o local onde foram
enterrados.
Uma semana depois tiraram a guarda e eu corri até lá. Não só eu, mas a
maioria dos jovens do Grupo Escoteiro. Era uma sepultura comum, só terra em
cima e nem uma cruz havia. Não foi preciso de Conselho de Patrulha e nem Corte
de Honra. Fizemos nosso trabalho. Com a ajuda do Mausoléu, um coveiro amigo
nosso demos a ele e sua família uma bela sepultura. Era o local mais florido
daquela morada onde todos diziam que quem estava lá não poderia voltar. Muitos Escoteiros
e eu também juramos de pé junto que nas noites de lua cheia Coletor tocava. E
como tocava. O campo santo começou a encher de ouvintes. Milhares e milhares
acorriam. Eu mesmo ouvi o som do seu violão tocando o Canto da Promessa, da
Despedida, do Fogo de Conselho e muitos outros. Nesta hora ninguém chorava e
sim dávamos as mãos e fechávamos os olhos para sentir mais a presença do
Coletor.
Um dia a necrópole se silenciou. Os sons do violão do Coletor emudeceu.
Alguém disse que ele foi para o céu. Nossa patrulha mesmo assim não desistiu. Todas
as noites fazíamos questão de arrumar as flores, limpar seu jazigo e na hora de
ir embora dávamos as mãos em volta de sua morada e rezávamos baixinho um Pai
Nosso pensando que ele, nosso amigo Coletor estava conosco nesta hora. Dizem
que a vida não tem começo e nem fim. Os maiores poetas já diziam também que
viver é uma maneira de sentir o mundo em um minuto e morrer é viver para
sempre. Nunca mais voltei a minha cidade. Pelas correspondências o
ex-Escoteiros da nossa patrulha que ficaram lá sempre diziam que o jazigo
continuava limpo. Um deles me escreveu que nasceu sem ninguém plantar um enorme
jequitibá. Outro dizia que muitos viram Coletor tocando seu violão em um galho
do enorme Jequitibá. São coisas de cidade pequena. As histórias contadas sempre
aumentadas, mas que nos fazem sentir que a felicidade existe nas lembranças para
sempre!
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