Lendas
Escoteiras.
“Flor
do Campo”. O sonho não acabou.
Esta história aconteceu há muito tempo. Não
dá para esquecer. Eu era Chefe de um Grupo Escoteiro, um grupo simples sem
muitas pretensões de ser grande ou o melhor. Era um bairro afastado do centro
de classe media e muitas favelas já urbanizadas próximas. Habitava este mundo escoteiro vivendo cada
dia, cada hora, cada minuto de minha jornada Escoteira sem contagem regressiva.
Eu sabia de cor o nome de todos os chefes, pioneiros, guias e seniores,
escoteiros e escoteiras, lobinhos e lobinhas. Tinha muitas amizades entres os
pais e frequentava os mesmos lugares que eles.
A história começa quando no pateo vendo o
andamento das reuniões notei a presença de uma menina magrinha, não mais que dez
ou onze anos, vestida com simplicidade. Nas reuniões seguintes lá estava ela sempre
com a mesma roupa, um sorriso ingênuo e cativante, Era realmente simpática
mesmo na humildade de sua roupa simples que vestia Cabelos castanhos com uma
pequena trança e seu semblante era de uma atenção cautelosa. Olhava-me de soslaio.
Notei que não tirava os olhos da tropa das escoteiras. Seus olhos negros
brilhantes se transportavam para as meninas que ali brincavam, riam, cantavam e
vi que ela de longe sonhava em ser uma delas como se estivesse em uma patrulha
participando. Ela ficava sempre confinada em um canto do pátio e nunca se
aproximava.
Foi em uma promessa de uma
Escoteira que vi seus olhos brilharem. Quando entreguei o lenço vi que seus
olhos se encheram de lágrimas. Ela em
seus sonhos pensava que um dia poderia ser ela com aquele lindo uniforme e ser
ela a promessada. Para ela era um momento prodigioso que transpunha no seu
imaginário, forçando entre o sonho e a realidade uma transferência física, como
se estivesse ali com a mão direita em saudação e acreditando que de agora em
diante sua vida seria outra. Uma escoteira. Mas tudo não passava de uma doce
ilusão.
A Chefe Melanie a
convidou várias vezes para entrar na tropa. Sempre com a mesma expressão não
dizia nada. Naquela tarde ela foi convidada a participar de um jogo. Das três
patrulhas duas estavam com sete e uma com seis. Completar seria mais lógico
para haver igualdade de competição. Acreditem, não tenho palavras para
descrever sua alegria. Jamais vi alguém participar de um simples jogo com tanta
energia e vibração. Ao final do jogo um agradecimento e vi que ela tentava se
enturmar, mas sem estar presente na Patrulha. Prestava atenção ouvindo e
tentando entender o que as patrulhas faziam, com cabos pequenos, bandeirolas, e
uma parafernália de papeis e desenhos misteriosos.
Um dia renovei o convite:
- Mocinha por que você não quer ser uma delas? Ela não me respondeu. Seus olhos
se encheram de lágrimas e saiu correndo. Não entendi. No sábado seguinte ela
estava lá e quando olhei para ela saiu correndo. Pedi então a Chefe das
Escoteiras que conversasse com ela. Foi então que fiquei sabendo de seu padrasto.
Homem mau, não trabalhava e exigia tudo que sua mãe ganhava como faxineira para
beber e gastar o único sustento da casa. Contou a Chefe que tentou autorização
com sua mãe e na segunda vez levou uma sova de seu padrasto. Era sempre assim.
Ele batia nela por prazer de bater.
Sua mãe sabia como ele era, mas o medo fazia
com que se mantivesse calada. Parecia historia da Cinderela sem sapatinhos de
cristal e com um final triste sem o príncipe encantado. Nada podíamos fazer. É
impossível o escotismo ajudar neste processo, pois ele depende e muito dos
pais. Ela continuou a vir e assistir as reuniões. Um dia chegou à sede um homem
dos seus 50 anos, grisalho, estatura mediana e um semblante arrepiante com uma
cicatriz no queixo. Vestia de maneira desleixada e não era nada amistoso.
Dirigiu-se ao meu encontro e levantou levemente sua blusa mostrando estar
armado. Não gosto disto. O olhei sem cumprimentar. Perguntou onde estava “Flor
do Campo”. Balancei a cabeça como a dizer que não sabia. Com o dedo em riste me
ameaçou dizendo que ela sempre vinha à sede e ele nunca a deixaria ser uma de
nos.
- Vocês são uma turma de
riquinhos. Ela fugiu de casa e se até amanhã não aparecer o senhor é o culpado,
falou cutucando o revolver na cintura. Fiquei sabendo depois que ela jogou uma
chaleira de água fervendo em seu rosto quando ele tentou agarrá-la e saiu
correndo. - Olhe moço ela fugiu de casa
sem nada levar. Procurei por ela em todo o bairro e nada. – Calado nada disse.
Alguns membros diretores que permaneciam na sala estavam atemorizados e
sobressaltados. Eu mais ainda. Nunca fui herói, não lutava karatê e de luta
livre não entendia nada. Ele saiu da sede resmungando e fazendo ameaças. Deu-me
prazo de um dia para ela aparecer se não eu seria responsabilizado.
Durante dias fiquei
preocupado sem saber como agir. No sábado seguinte, esperei ele aparecer. A
surpresa foi à vinda de sua mãe e ela. Educadamente se apresentou. Chorando contou
sua história salpicada de novas informações. Ele era um bandido perigoso e fora
morto na tentativa de um assalto a banco. Olhei para “Flor do Campo” cujo
sorriso era contagiante. Acreditava que agora seu sonho em ser Escoteira seria
real. De um padrasto violento via que seu mundo mudou para melhor. “Flor do
Campo” foi aceita. Nunca vi uma jovem como ela. Sua promessa foi inesquecível.
Chorou de alegria como se estivesse vivendo um conto de fadas.
Ficou conosco por seis anos. Foi
escoteira e guia. Conseguiu todos os distintivos possíveis. Amava o escotismo e
quando fez dezoito anos sua mãe voltou para sua cidade no nordeste. Ficamos
tristes, pois tínhamos por ela muita afeição e ternura. Sua mãe tinha recebido uma
pequena herança de um sítio de sua avó. Na rodoviária nos despedimos com a
Canção da despedida. Muito choro, mas todos orgulhosos de “Flor do campo”. Cinco anos depois, uma surpresa - recebemos na
sede a visita dela. Desta vez acompanhada de seu marido e dois filhos.
Apresentou-nos a todos com orgulho. Estava a passeio e contou que era Akelá de
lobinhos em um Grupo Escoteiro na cidade onde morava. Sorria nos encantando a
todos.
Foi emocionante e havia ainda muitos da sua
época. Até hoje costumo receber uma pequena cartinha dela onde conta suas
aventuras e sua vida escoteira. Costuma enviar fotos e pede sugestões. Ela
mesma confirma que vai admiravelmente bem na trilha do sucesso. Eu um Velho
Escoteiro tenho um grande orgulho em ser amigo dela. São coisas impossíveis que
se tornam possíveis pela obstinação de um movimento incrível. Sempre digo que o
escotismo é uma filosofia, uma maneira de realizar sonhos, sorrir e viver feliz
para sempre!
nota: Uma
história que peca pelo inverossímil, mas cuja realidade está viva até hoje. São
fatos da vida escoteira e sempre lembro que nem todos eles tiveram um final
feliz. Mas quem tem? A vida é uma constante, viemos com uma finalidade, mas que
pode ser alterada pelo simples fato de termos liberdade para decidir. Nunca me
esqueci de Flor do Campo. Já tem tempo que não vejo falar dela. Só desejo que
ela esteja bem e que a felicidade tenha encontrado morada em seu coração.
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