Lendas Escoteiras.
O último por do sol.
Faz anos... Muitos... Uma
pequena fogueira, chefes cantantes e eis que um se põe a chorar. – Todos
preocupados. Chefe Thadeu não se fez de rogado e começou a contar uma das
histórias mais tristes que já ouvi. Naquele dia chorei. E até hoje quando conto
a historia ainda choro. Assim ele começou:
- Eu era Chefe de uma tropa Escoteira lá no
Bairro do Berilo. Perto da minha casa e ia sempre a pé. Era uma boa tropa. Eu
tinha bons Monitores que me ajudavam muito. Não era um grupo grande, mas com
uma união formidável. Havia um escoteiro que era especial apesar de eu não ter
preferencia, pois todos eram meus preferidos. Waldo era diferente. Nos seus quatorze
anos tinha todas as qualidades que se pensava de quem tinha “Espírito
Escoteiro”. Na Patrulha Quati Waldo era um amigo e conselheiro de todos. Não
era o Monitor, mas cativava pela sua ponderação, pelo seu exemplo não só na
tropa como na escola e em sua vida familiar. Eu me acostumei quando aparecia
algum problema chamar o Waldo. Tinha um jeitinho próprio de conversar que
conquistava qualquer um que estivesse ao seu lado.
Foi em um sábado de maio
ao chegar à sede não vi o Waldo. Era o primeiro a chegar e o último a sair.
Perguntei a Tonho seu Monitor se ele sabia de alguma coisa. Não sabia. Pensei
comigo que ele devia ter um motivo muito forte para ter faltado. Liguei para
ele a noite. Quem atendeu foi sua mãe. – Chefe, o melhor é o Senhor vir aqui em
casa. Não dá para falar por telefone. Fiquei preocupado. O que seria? A Mãe
dona Aurora e o pai seu Rodolpho me receberam na porta. Estavam tristes e
taciturnos. – Chefe, falou dona Aurora, Waldo me pediu para ele mesmo dizer.
Acho que o Senhor deve ficar prevenido. A notícia vai chocá-lo muito. – Vi que
lagrimas caiam dos olhos de ambos. O Senhor Rodolpho tinha a voz embargada.
Subi ao quarto de Wald e
ele me esperava sentado na cama. Senti nele um sorriso triste e sua voz baixa por
natureza estava rouca. Seus cabelos estavam caindo e aquilo me assustou. – Olá
Chefe, Sempre Alerta! - Ele tinha ficado em pé. Dei-lhe um aperto de mão e um
abraço. – Waldo, todos estão sentindo muito sua falta e as saudades são
grandes. Ele sorriu. – É Chefe, vai ser difícil minha volta. Vou direto ao
assunto. Melhor ser franco com o Senhor. Estou com Leucemia no cérebro. O médico
disse para minha mãe que eu tenho no máximo quatro meses de vida. - Foi como se
eu tivesse levado um soco, uma pancada. Fiquei chocado. Sentei em sua cama. –
Calma Chefe, isto acontece, eu fui o escolhido por Deus desta vez e sorriu. –
Meu Deus! Pensei. Que calma deste garoto! Incrível! – Olhe Chefe, eu convenci
minha mãe. Ela e meu pai não queriam, mas eu gostaria antes de partir para o
céu na minha estrela de Capella, eu queria ir ao acampamento do próximo mês no
Vale dos Sinos.
– Mas como Waldo? Você mal
fica em pé e nem pode andar direito! – Eu sei Chefe, mas eu preciso. Não posso
partir sem ver o último pôr do sol nas escarpas cintilantes. - Me lembrei do
que ele falava. O Pôr do sol nas escarpas era maravilhoso. O mais lindo que
tinha visto. Eu nunca pensei que ele pudesse lembrar e nem eu mesmo lembrava
mais. Olhei para Waldo. Não podia negar aquele último favor. Se ele queria eu
não iria dizer não. Combinei com seus pais de passar lá no dia do acampamento pela
manhã para pegá-lo. Não disse nada para a tropa e nem para os chefes. Insisti
para que ninguém faltasse. Queria dar a ele uma despedida inesquecível. Seria o
maior Fogo de Conselho para ninguém mais esquecer. – Passei lá no dia
determinado. No acampamento ele insistiu em ficar com sua Patrulha. Estava
tremendo, fraquejava, mas dizia que iria dormir na barraca da Patrulha.
Poderia ter armado uma
barraca só para ele, mas foi enfático em ficar na patrulha e não queria dormir
sozinho. – Chefe, é câncer! E sorria. Nada mais que o cancerzinho idiota. Não
vai ter perigo para ninguém. Ele não é contagioso! – Meu Deus! Que Escoteiro
era aquele? Waldo de quatorze anos me dando lição? Eu tinha levado uma cadeira
de praia e ele recusou. O dia que ele quisesse eu o levaria em minhas costas
até as Escarpas Cintilantes. – Chefe vou fazer a minha de madeira, devagar, mas
vou fazer. A Patrulha viu que ele estava doente. Disse para ela que ele estava
se recuperando de uma forte pneumonia. Ele quase não participava das
atividades, mas ajudava na cozinha. Fez uma bela cadeira. Sentava e fechava os
olhos. Seus lábios entreabertos pareciam sorrir. No penúltimo dia vi que ele
respirava com dificuldade. – Waldo eu vou levá-lo para sua casa. – Chefe nem
pensar. Me leve agora até as Escarpas Cintilantes. Meu tempo está acabando.
Fui sozinho com
ele. Em principio foi andando depois o vi fraquejar. O coloquei no colo. Uma
palha de tão magro. Em menos de meia hora chegamos. Sentei junto com ele na
barranca que dava para todo o Vale dos Sinos. Um espetáculo a parte. Deviam ser
umas cinco e meia da tarde. Chefe eu posso fazer meu último pedido? Claro meu
amigo. Claro. - Quando eu estiver indo para a terra dos meus ancestrais no
campo santo, eu não quero que cantem a canção da despedida. Cantem todas
aquelas alegres que sempre cantamos para que eu tenha boas lembranças. Não
disse nada. Não havia nada para dizer.
O sol foi aos poucos
se escondendo atrás das montanhas do Vale dos Sinos. Waldo sorria. Não tirava
os olhos do horizonte. Eu engasgado. Danação! Eu não era como ele. Estava
difícil aguentar. Queria chorar e não podia. Não podia chorar naquele instante.
Não podia. Eu sabia que eram seus últimos momentos. Waldo me olhou. Piscou os
olhos e me disse – Chefe foi a maior alegria da minha vida. Vou levar para
sempre esta lembrança. Obrigado Chefe. Obrigado. Foi aos poucos deitando no meu
colo. Esticou suas perninhas secas. Waldo morreu sorrindo no meu colo naquele
anoitecer frio de junho. Ficou ali imóvel como se estivesse dormindo.
Fiquei ali chorando por
muito tempo abraçado ao corpo de Waldo. Alguém bateu no meu ombro. Olhei e não
vi ninguém. Aonde o sol se punha vi uma nuvem branca brilhante que logo
desapareceu. Desci as escarpas com ele no colo. Uma eternidade até chegar ao
acampamento. Uma dor profunda. Toda a tropa chorava. Voltei para a cidade. Meus
olhos vermelhos e as lagrimas não paravam de cair. Meu coração batia sem parar.
Minha vontade não era minha. Naquele momento achei que eu também tinha morrido
com o Waldo. No dia seguinte estávamos todos na sua exéquias. Cantamos ao som
de um violão a Stoldola, Avante Escoteiro, Lá ao longe muito distante e outras.
Todos cantavam com vigor escoteiro. Muitos choravam. Eu também. Não dava para
segurar.
Os anos passaram. Nunca me
esqueci de Waldo. Nunca me apareceu em sonhos. Nunca falou comigo em espírito.
Deve estar feliz, muito feliz em Capella, a terra dos seus ancestrais. - Chefe
Thadeu parou de contar. Chorava copiosamente, eu e os outros com os olhos
cheios d’água tentávamos racionar. Sem condições. Ninguém falou nada. Um
silêncio profundo e ali ficamos até o raiar do dia...
Nota - Foi em uma Indaba no
interior de Minas Gerais, lá pelos idos de 1971, que um Chefe quase chorando me
contou esta historia. Verdade ou não me emocionei e nunca mais esqueci, já foi
publicada, mas porque não contar novamente a quem ainda não a leu?
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