Lendas Escoteiras.
Jesus de Nazaré.
Um asilo de periferia. Paredes descascadas, sem jardins, sem flores; Utensílios
simples sem sofisticação. Quartos com três beliches um pequeno refeitório e uma
TV preto e branco. Na rua o lixo acumulava. Um Chefe me contou sobre Jesus de
Nazaré um Velho negro que às vezes dizia ter sido escoteiro. Chefe, ele é um
exímio contador de histórias. Entrei meio deslocado naquele ambiente
desleixado. Achei que os idosos ali não teriam muito tempo de vida.
A recepcionista com cara de
poucos amigos relutou em me deixar entrar. Vendo-me de uniforme Escoteiro abriu
um precedente e me levou até um quarto onde mais dois idosos dormiam ou estavam
dopados com alguma substância que eu desconhecia. Jesus de Nazaré estava
acordado. Estava limpo e bem asseado e me recebeu com um sorriso.
O cumprimentei. Sentei no beiral de sua cama. Ele me olhou sorridente. Um
olhar comovente mostrando ser alguém com alma e coração escoteiro. Só de olhar
vi que Jesus de Nazaré era um homem feliz. Cabelos crespos brancos olhos negros
que me fitaram bondosamente. – Olá eu disse! – Me surpreendeu dizendo em voz
cantante: - Sempre Alerta Chefe! Um alerta que jamais alguém me disse como ele.
Tocou-me demais. Sabe Chefe, há tempos não via um escoteiro. Tenho grande
admiração por vocês.
Falando
compassadamente, uma voz maravilhosamente bela, começou a toar como se tivesse
contando uma história para milhares de escoteiros perdidos na escuridão da
noite em uma floresta qualquer na beira de uma fogueira: - Ouvi falar de
vocês... Amam a natureza. Gostam de uma noite de luar. Admiram as estrelas e os
ventos que sopram nos baixios dos vales perdidos entre montanhas e picos mais
altos. – Olhei para ele surpreendido pela maneira com que conduzia seu
monólogo. O modo como contava poderia ser um de nós.
– Piscou
os olhos sorriu e continuou: - Eu sempre quis ser um. Na minha alma eu não
lembro se fui, pois muitos são e não sabem que são. Meu Senhor da Fazenda onde
morava nunca deixou. Seu filho era. Era meu amigo. Contou-me as maravilhas de
uma vida escoteira, que dizia nunca esquecer.
Percebi
suas qualidades de Contador de Histórias. Em poucas palavras prendia minha
atenção. Eu sabia que para ser um haveria de ter sensibilidade e empolgação,
saber esticar sonhos em forma de ponte para juntar o mundo da fantasia e do
imaginário. Ele deu outro sorriso. Parecia ler minha mente. Contaram-me que
tinha mais de 110 anos. Se tivesse sido escoteiro seria um dos mais velhos que
o Brasil conheceu.
Não era
conhecido. Um negro perdido em um asilo de beira de estrada. Nunca foi famoso.
Alguns tiveram a sorte de ouvir seu vozear. Imaginei quantas histórias contou
nos píncaros mais altos ou na bruma escura de uma floresta e quantos devem ter
se extasiado. Penso que os Contadores de Histórias são uma raça em extinção. Seu
sorriso era viçoso, cheio de amor e paz. Mesmo ali em um albergue imundo, ele
se sentia feliz. Se teve amores não demonstrou.
Apertou-me a mão como se fossemos
irmãos de sangue. Jesus de Nazaré era diferente, alegre, gentil e educado. Um
antigo Contador de Histórias dizia que ser bom é ter conhecimento antecipado do
texto. Dos elementos que o compõe, das emoções escritas e familiarizando com
suas personagens. Seria isto mesmo? E aqueles que contavam as histórias tiradas
da imaginação? Não sabiam como seria o meio e o fim.
– Me olhava com olhar sutil
e sincero e confesso que entreguei a ele meu coração. - Chefe... Nunca fui
Escoteiro, nunca pude pegar a lua e guardar nos parcos pertences que tenho. As
estrelas que vocês contam eu nunca pude contar, não sei ler nem escrever. Tive
a felicidade de respirar o ar da floresta, de sentir no rosto a brisa da manhã.
Com minhas mãos construí cidades, fui amigo de cobras e animais que muitas
vezes se mostraram mais verdadeiros que os homens.
- Conheço a Lei do Escoteiro. Deus deu a Moisés primeiras Leis no mundo. Pouco
comentadas e muitos não levam a sério. Mas a de vocês é simples e direta. Ela
não diz faça ela diz tente para compreender. Ter uma só palavra, ser leal belo
demais. São dez artigos da lei, não? Fiquei ouvindo extasiado. - Sabe o que
mais gosto de vocês? A promessa. Não diz que é obrigado diz que fazer o melhor
possível é melhor que prometer. Estava estupefato com aquele Velho negro
Contador de Histórias. Como sabia tanto de nós? Verdade é que palavras bonitas
ditas com sinceridade me emocionam. Sempre admirei sorrisos sinceros e me encantavam
as atitudes de um homem honesto.
– Ele me
fitou sorridente... Não se assuste como o ambiente que estou. As palavras
ásperas que me dirigem não me magoam mais. As agressões não me ferem e muitas
maldades não mais me assustam. Olhei para ele e me senti pequeno diante da sua
grande verdade. O Velho Contador de História marcou em minha vida uma
existência que desconhecia. Francamente eu não conhecia sorrisos honestos,
espontâneos e a aceitação da adversidade com um simples estalar de um olhar.
Ele se tornou para mim especial.
Nunca
imaginei que pudesse me modificar e aceitar um local como aquele para morar, agora
via o Asilo como se fosse à redenção de um jardim do Edem que ele fazia questão
de apregoar. Quando o olhava parecia estar respirando o ar das montanhas em dia
de sol. Quantos pensamentos e lembranças ele deixou em mim. Fiquei calado, já
não me sentia o Contador de Histórias que tantos me apregoavam que eu era.
Pensava em estar com ele sempre, pois só seu olhar me rejuvenescia. Quando a
enfermeira disse que o tempo acabou lhe dei um abraço. O beijei como se fosse o
meu pai. Dei-lhe a mão esquerda e me senti realizado.
Na porta do Asilo ela me
disse: - Tem pouco tempo de vida, vai partir em breve. Seu coração não vai
aguentar outras luas que irão nascer. – Chorei. Fui para casa rezando e pedindo
a Deus que no fim da minha vida me desse à força daquele Velho Contador de
Historias. Nunca o esqueci. Pessoas como Jesus de Nazaré ensinam sem palavras
só com sorrisos. Até hoje sinto saudades daquele negro velho contador de
historias. Sorridente mostrou que a realidade uns machuca e para outros
encanta.
Voltei lá
outras vezes. Um dia me disseram que ele morreu. Para mim não morreu, partiu em
busca do seu verdadeiro caminho. Queria estar lá para dizer Adeus. Mas ainda me
divirto quando ia saindo e ele sorrindo me disse: Chefe, entrou por uma perna de pato, saiu por uma perna
de pinto, quem quiser que conte cinco!
Nota – Conheci um Negro velho, cabelos crespos brancos que dizia se
chamar Jesus de Nazaré. Vivia em um asilo pobre, um albergue daqueles que a
gente pensa duas vezes se deve entrar. Contaram-me que era um Maravilhoso
Contador de Histórias. Fui ver se era verdade. Conheci sim um santo homem, que
transmitiu para mim a humildade de alguém que muito sofreu e aprendeu e que a
vida é maravilhosa se não se tem medo dela. São meus convidados. Bem vindos!
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