sábado, 28 de abril de 2018

Lendas Escoteiras. O último toque de silêncio!



Lendas Escoteiras.
O último toque de silêncio!

           Tony Blanco chorava copiosamente em um bar de uma travessa da Avenida São João. – Vado, sei que se lembra do Pintassilgo. Você sabia da nossa amizade. Você foi um dos poucos que nunca duvidou de nós. – Eu me lembrava, eram amigos inseparáveis. – Fui testemunha como eram mais que irmãos, amigos inseparáveis. Eu era da Patrulha Lobo e eles da Touro. Juntos em tudo. Na escola, na Patrulha e nas jornadas da vida. Tony Blanco me olhou com os olhos marejados... Lembra-se daquela jornada na Ilha do Cajuru? Foi demais não? – Eu lembrava. Nunca esqueci. Vado eu não sou mais Escoteiro. Eu hoje não sou nada. Um molambo largado na vida. Não tenho família, amigos, nada e nem ninguém que se preocupe por mim.

             A vida é uma surpresa atrás da outra. Havia anos que não ia ao centro e eis ao descer do ônibus na São João parei na esquina para tomar um suco gelado num bar próximo. Muito calor. Foi então que o vi. Nada mais nada menos que Tony Blanco. Maltrapilho, sujo, cara lisa, o mesmo corpo forte que foi apelidado de Maciste. Hoje uma sombra do passado. A última vez que o vi foi em 1976, em um Seminário Escoteiro em Juiz de Fora. Nunca mais nos encontramos. – Ele me reconheceu. Muitos abraços e seus olhos rasos d’água. Pois é Vado faz tempo não? Ele não sorria. Onde anda o Pintassilgo? – Perguntei.

            Morreu Vado. Morreu. Uma morte horrorosa. Ficamos juntos até 1990. Morávamos juntos em um barraco da Vila Madalena. Ele nunca me deixou. Por causa dele não casei com a Das Dores. Gostava dela, mas ele não me deixava. – Arrume uma namorada Pintassilgo! Ele ria e dizia: – Não quero. Se arrumar vou casar. Se casar você deixa de ser meu amigo. Você sabe Vado muitos não entendiam nossa amizade. Acho que não entendem que para ser amigos de verdade não precisamos de subterfúgios. Basta gostar. Gostar de maneira simples, sem desejos, sem aspirações que não seja estar junto de quem gosta. Das Dores riu de mim quando disse isso a ela. Interpretou mal. Vim para São Paulo. Pintassilgo veio também. Comecei a trabalhar em uma Construtora como Mestre de Obras. Ele também. Saímos cedo e voltávamos tarde para nosso barraco.

             - Tony, você ainda toca o Clarim? Perguntei. Ele me olhou e parece que voltou aos tempos escoteiros. Pois é Vado éramos os melhores no clarim. Lembra quando fomos servir em Juiz de Fora? O Sargento ficou na dúvida entre mim, você e ele ser corneteiro mor da unidade. Olhos profundos olhava para todos os lados. – O joguei fora. Tinha de jogar – Porque meu amigo? – Pintassilgo um dia desapareceu. Tentei encontrá-lo por toda a cidade. Perdi o emprego por isso. Dois meses sem ele. Que falta Vado eu sentia dele. Não conseguia emprego fixo. Fui para as ruas. Virei Morador de rua. Aqui e ali uns trocados. A vida ali é dura, mas aprendi muito. Hoje sei me virar.

               - Largou mesmo o escotismo? – Larguei. Cheguei a ajudar em um próximo a minha casa. Difícil. Tudo diferente do que fazíamos. Gostava dos jovens, mas implicaram com Pintassilgo. Ele sempre junto. Falaram coisas que não gostei. Não entendiam o valor de uma amizade. – fui a várias delegacias a sua procura. Perda de tempo zombavam de mim pelo que eu era. Fui a hospitais, Rodei em prontos socorros, fui ao IML e nada. Não dormia direito. Ainda tinha meu clarim guardado na caixa. Havia anos que não tocava. Todas as tardes ficava esperando que ele apontasse na Rua da Saudade e nada.

                 Um dia descendo com a carrocinha na descida da Avenida Angélica eu avistei o Nonô, você deve lembrar-se dele. Era Monitor da Pica Pau. Eu não sabia que era ele. Seus cabelos caíram e só pelo seu nariz fino e comprido que me lembrei. – Ele me reconheceu. Era agora investigador da polícia civil. Convidou-me para tomar uma cerveja e até pagou para mim um almoço. Fazia dois dias que não comia.

                 - Foi ele quem me contou sobre pintassilgo. - Morreu estupidamente Tony Blanco. – - Morreu torturado por traficantes na Favela da Caixa D’água. – Chorei. – Por quê? Porque meu Deus? – Ele disse: - O confundiram com o Maneco Tiro Certo. Eram quadrilhas rivais. Como investigador da 17º Delegacia fui ver uma denuncia anônima. Cortaram sua cabeça, seus braços e pernas. Depois atearam fogo. – Ficamos em silêncio por longo tempo. Não sabia o que dizer. – E aonde foi enterrado? No Cemitério de Vila Alpina. – Ele ainda me contou um pouco de sua vida. Deixou-me um cartão. – Se precisar telefone disse, ainda somos irmãos escoteiros. Lembrei-me do Chefe Tonho – Um Escoteiro é sempre irmão. Nunca deixa um dos seus na mão.

                     - À tarde do dia seguinte fui até o cemitério de Vila Alpina. Tomei um banho no Albergue e coloquei meu uniforme Escoteiro. Estava guardado. Nunca me desfiz dele. Todos os mendigos de lá assustaram. Peguei um ônibus até Vila Alpina. A mocinha que me atendeu não tirava os olhos de mim. Disse-me onde ele estava enterrado. Joviel Peixoto. Eu sabia seu nome. Não havia sepultura. Um buraco. Mais nada. Pedi uma pá emprestada. Fiz uma tampa de terra. Tirei de outros túmulos mudas de grama e algumas flores. Achei duas taboas. Fiz uma cruz. À mocinha me olhava de longe. Estava escurecendo. Tirei da minha bolsa meu clarim. Meus olhos se encheram de lágrimas. A boca seca. Não conseguia tocar. Era demais! Estava engasgado e comecei a chorar copiosamente!

                    - Vado, eu juro, eu juro que o vi em pé na sepultura! Sorria, não disse nada, estava de uniforme Escoteiro. Brilhava na escuridão. Fez-me a saudação Escoteira. Desta vez toquei meu clarim com garra. E como toquei. O mais triste toque de silêncio que toquei em minha vida. – Sabe Vado, eu vi, eu vi mesmo muitos que ali morreram ficarem de pé em suas sepulturas calados. Eu vi relâmpagos no céu. Eu vi uma estrela brilhante em cima de nós.
             
                    - Eu ouvia em silêncio e também chorava. Lembrei-me de poema que me tocou muito: - “Os clarins tocam pelos heróis, que morrem pela ignorância humana. O Silêncio é das vozes que se calam diante das injustiças e barbárie que são cometidas contra quem não pode por si, se defenderem”.  Eu conhecia o toque. O toquei milhares de vezes. É um toque triste. Fiquei ali com Tony por muito tempo. Chorava e eu também. O bar vazio. Dei a ele meu telefone. Escureceu. Não podia mais comprar o que meus filhos pediram. Despedi-me dele oferecendo ajuda. – Obrigado Vado, obrigado. Já tenho o suficiente para viver minha vida de morador de rua. É minha sina. Aqui eu vivo e aqui morrerei. Saiu me dando um aperto de mão e um Sempre Alerta. - Falar mais o que?


Nota - Uma história emocionante. Uma amizade que durou por uma vida. Dois Escoteiros que nunca se separaram. Muitos duvidam que possa haver uma amizade como eles tiveram. De amor, de lealdade, de um por todos. Escoteiros até a alma. História que quando escrevi no final foi com lágrimas nos olhos. Fique a vontade para saber por quê!

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