Lendas Escoteiras.
João de Deus.
- Escrevi
este conto ouvindo “Noturno” com a orquestra de Carlos Slivskin. Sou emocionalmente
chorão. Escrever uma historia e chorar com ela não dá para entender. Já
publiquei, mas estava ouvindo a poucos instantes “Noturno”. Meus olhos se
encheram de lágrimas. Porque não postar novamente?
Dois dentes grandes o faziam parecer um coelho quando sorria. Afável,
gostava de um sorriso. Moreno cabelo cortados com máquina zero. Fazia parte do
lugar onde estava. Magro e pequeno para sua idade de doze anos. Poderia ser
Lobinho que ninguém viria à diferença. Filho de Dona Maria Noêmia, mulher
boemia que passava as noites onde ninguém podia contar. Dificilmente ia visitar
seu filho. Seu pai fugiu um dia e nunca mais voltou. Ele sentia falta. Queria
um pai. Olhava para Miro como se fosse seu pai. O escotismo lhe deu outra vida
outro motivo para voltar a viver. Esteva internado havia dois anos. Suspeitavam
de um câncer. O tratamento de quimioterapia nem sempre ajudava. Tossia, sentia
dores tremendas no peito, gritava de dor e os médicos sem nada poder fazer a
não ser aplicar morfina. Nunca esqueceu aquele dia que Miro entrou na enfermaria.
Na mão segurava um bastão com um totem do Tico-Tico. – Gritou alto! – Quem quer
ser de minha patrulha? João nem pestanejou. Gemendo de dor se levantou. – Eu
quero! – Disse.
Todo sábado pela manhã Miro chegava, sempre só, sempre falando alto: -
Patrulha em forma! João se levantava com dores horríveis, mas formava com mais
três. Leonel, Pedro e Josias. Josias morreu dois meses depois, Pedro ficou mais
tempo na enfermaria até o dia que saiu para operar e nunca mais voltou. Leonel
morreu sorrindo no dia que a patrulha ouvia a historia de Caio Vianna Martins
que Miro contava com emoção. Todos ouvindo atentamente. Ninguem viu Leonel escorregando
da cama e caindo ao chão. Chamaram as enfermeiras que o levaram. Também nunca
mais voltou. A patrulha teve mais dois patrulheiros novos na enfermaria que aceitaram
entrar. João contava nos dedos o dia de reunião. Aguardava ansioso. Miro um dia
narrou fazendo gestos como eram os acampamentos Escoteiros. As barracas, a
mesa, as poltronas de madeira a cozinha e o fogão de barro. João sorria um
sorriso de um jovem que sonhava em ser sem saber que nunca poderia ser um
deles.
Ele imaginou como seria a barraca, sorria pensando que estava dormindo
em uma delas, como seria a mesa que chamavam de pioneiria. Imaginou o fogão
aceso, as brasas, a panela fazendo arroz e a frigideira fritando ovo. Sonhava
com o fogo de conselho. Era lindo pensava. Um dia Miro não foi. João de Deus
sentiu tanta falta que chorou baixinho por muito tempo. Miro era seu bastão,
seu sonho que nunca se tornaria realidade. Dois sábados seguinte Pablo chegou.
Era o Sub. Monitor. Explicou que Miro foi operar na cidade grande. Queria
despedir, mas o Doutor do Hospital disse que não. Seria muito triste sua
despedida e não iria fazer bem para ninguém. Pablo era diferente. Pequeno,
olhos negros enormes como se tivesse forçando para ver. Mas era um Escoteiro
legal. Logo fez amizade com todos. Disse que a patrulha Tico-Tico não iria
acabar. Ele estava ali para levantar o bastão e darem o grito. João de Deus
sentiu saudades de Miro, mas voltou a sorrir o que não fazia há muito tempo.
Pablo ensinou a Canção da Despedida. João gostou, mas achou muito
triste. Preferiu o Cuco, a árvore da montanha e adorava o Avançam as patrulhas.
Pablo trouxe xerocado uma foto de patrulhas correndo pelas campinas, com a
bandeira do Brasil. Era do caderno Avante. Lindo de morrer. João não tirava os
olhos. O tempo todo ali olhando até desligarem as luzes. Fechava os olhos e seu
corpo era transportado para os montes, para as montanhas, para as campinas e
junto com seus companheiros eles cantavam o Rataplã. Seu sonho era fazer a
promessa, pois sabia a Lei de cor e salteado. Um sábado também Pablo não
apareceu. Ninguem explicou por que. Quem sabe a enfermaria só com ele presente
a patrulha não podia se reunir. Juca, Moisés, Nonato também partiram para as
estrelas conforme Dona Matilde a enfermeira explicava a morte dos jovens
enfermos.
Mas ele queria continuar Escoteiro. Sabia que mesmo com um ele podia
ser. Foi Miro antes de ir embora quem disse que onde houver um Escoteiro tem
uma Tropa. Ele não sabia o que era Tropa, mas sabia que podia continuar amando
sua patrulha e o escotismo. Um sábado bem tarde apareceu um Escoteiro bem mais velho.
Já com seus dezesseis anos. Procurou João de Deus. Disse para ele que se
chamava Rael. Não podia ficar ali, pois o Diretor do Hospital proibiu. Achavam
que a patrulha estava prejudicando muitos os meninos doentes e eles no último
momento sempre pediam para dar o ultimo grito de patrulha. Era impossível. Isto
não ajuda contou Leo o Sênior. – João, estou aqui a pedido de patrulha
Tico-Tico. Ela está na porta do hospital. Não deixaram eles entrarem. Só eu e
me pediram para sair logo. Mandaram entregar para você o Livro do Fundador do
Escotismo. Baden-Powell O Escotismo Para Rapazes. Eu mesmo comprei outro para
presenteá-lo. O Caminho para o sucesso também de B-P.
Leo partiu e João de Deus começou
a ler os livros que fizeram dele um Escoteiro diferente. Agora conhecia tudo
porque ele deveria ter sido um. Deveria ter acampado, deveria ter conhecido
trilhas e montes, deveria ter subido nos mais altos picos, deveria ter acampado
nas mais lindas florestas do Brasil. Seu sonho era sentar em volta de um fogo,
bater palmas, cantar sorrir e representar uma bela esquete. Quase não jantou naquele dia. Quando a luz
apagou ele chorou. Não queria parar de ler. Nunca na vida se sentiu assim.
Fechou os olhos devagar. Suas lagrimas caiam sobre a cama. Sentiu uma luz
azulada entrar no quarto. Viu um velhinho sorrindo para ele. Parou ao pé da sua
cama. Falou pausadamente o lema Escoteiro – Sempre Alerta João de Deus. Quer ir
comigo para o Grande Acampamento do céu? João de Deus parou de chorar. Olhou
para um lado e outro e viu centenas de patrulhas formadas. Havia uma, um jovem
sorrindo chegou até ele: - João vim buscar você. Era Miro. A Patrulha Tico-Tico
não é a mesma desde que você foi morar na terra!
Na vida real ninguém viu
uma enorme nuvem brilhante e alva sobre o Hospital. Uma linda estrela esperava
o menino João de Deus. O Doutor Tavares sentiu um calafrio. Correu até a
enfermaria e viu João de Deus de olhos fechados e sorrindo. Viu que ele estava
morto. Ninguem viu seu último suspiro, mas o Doutor Tavares sorriu pensando que
João de Deus morreu feliz. Na porta do hospital uma multidão de escoteiros de
mãos entrelaçadas cantava uma canção estranha para ele. Diziam que não era mais
que um até logo, não mais que um breve adeus. Completavam dizendo que breve
muito breve todos iriam se encontrar nos braços do Senhor.
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