Lendas Escoteiras.
Só o amor será minha herança.
Ninguem
notou naquela manhã de sábado a luz forte azulada que caiu mansa sobre a cidade
de Purgatório. Poucos observaram um jovem alto com o uniforme social dos
Escoteiros, atravessando a ponte de madeira com um sorriso contagiante, uma
forquilha na mão, uma pequena mochila e passos que não tinham pressa em chegar.
Era uma cidade simples, pequena, onde havia poucos jovens por falta de
oportunidade profissional. Os mais velhos diziam que no passado havia muito
amor, cortesia, fraternidade e amizade entre seus residentes. Ninguem notou
também aquele jovem calmo, com passadas curtas, olhando para frente com um
sorriso nos lábios cumprimentando a todos que encontrava. Ali ninguém notava ninguém.
Purgatório tornou-se uma cidade dispersa, Seus habitantes mudaram de hábito e
agora viviam para si sem pensar no seu próximo. Um poeta disse uma vez que era
fácil sair com várias pessoas ao longo da vida. Difícil é entender que
pouquíssimas delas vão te aceitar como você é e fazer feliz por inteiro.
Difícil é ocupar o coração de alguém. Saber que se é realmente amado.
O
jovem entrou na Rua da Tristeza onde havia poucas casas e na última entrou. Ele
sabia que estava vazia. Desde que ele saiu dali a muitos e muitos anos pensou
que mesmo dizendo nunca mais ele voltaria de novo. Ninguém o viu entrando em
sua velha casa; - Na porta disse - Eu voltei, espero que me aceite, pois aqui é
meu lugar! Quanto tempo se passou? Melhor não pensar e seguir seu plano
conforme seu sonho durante todo o tempo que ficou fora de Purgatório. Ele
sonhava em fazer dela uma cidade para todos poderem sorrir e amar seu
semelhante. Abriu às janelas, as cortinas eram as mesmas, brancas de cetim com
pequenos babados a enfeitar suas laterais. Os móveis estavam limpos, a cozinha
um brinco, tudo bem lavado, asseado e bem cuidado. Fez um café no ponto. Uma
pequena chícara e bebeu com gosto. Não estava com fome, deixou para fazer um
lanche na sua volta. Estava quase na hora. Entrou no quarto e viu seu uniforme
de campo solto e bem dobrado em sua cama e gostou do que viu. Bem passado como
sempre foi quando o usava. O lenço ele dobrou devagar. Viu na parede o
porta-chapéus com o seu bem acondicionado. Os sapatos foram engraxados e os
meiões preparados na cadeira de vime ao lado.
Não precisava correr, sabia a
hora que ia iniciar a contenda, mais conhecida como reunião. Ele já fora um
deles, mas agora o passado era longo e o caminho que achou que não ia acontecer
mudou de rumo como o vento que sopra para o norte e alguém lhe diz para ir para
o sul. No seu subconsciente sempre achou que não teria mais volta. Vestiu seu
uniforme como sempre vestia. O pequeno relógio de seu pai que abraçava a parede
verde clara da saleta da entrada marcava quinze para as duas da tarde. Tempo
suficiente para ele chegar e rever e resolver a contenda que seu destino o
levara até ali. Na Rua da Angustia ninguém olhou para ele. Na Praça dos
Piedosos não viu ninguém. Chegou à sede sorrindo, ninguém olhou para ele. Para
muitos ele sempre esteve ali. Não era nada não era ninguém. Levantou as mãos e
orou. Pediu a Deus em uma prece profunda que mudasse o coração da irmandade,
que pensassem mais nos outros que em si. A cidade precisava mudar. Aqueles
sorrisos de outrora, aqueles apertos de mãos, aqueles abraços tão gostosos não
podiam ficar armazenados no coração das pessoas.
Ele sempre soube que o começo de tudo estava ali, naquele Grupo Escoteiro onde
se acreditava em uma Lei, onde se dizia que há honra estava acima da vida e da
morte. Onde a palavra tinha um dom de ser acreditado, pois a grandeza destas
máximas não consiste em receber aplausos, mas sim em fazer por merecer. Todos
se dirigiram a ferradura. Hora do Cerimonial. Hora da reunião da família
escoteira hora da bandeira ressoar no ar. Ele ficou junto à chefia, não houve
sequer um abraço um aperto de mão. Ele notou olhos tristes, faces angustiadas,
enrugadas, sorrisos tortos, palavreado difícil para entender. Os lobos tentavam
sorrir e não conseguiam. As patrulhas desleixadas, os seniores a conversar
entre si. Os chefes não se olhavam e sentia-se que ali não havia amor, amizade,
lealdade e os que estavam presentes eram como se fossem mais um dos fantasmas
escoteiros que não se conheciam.
A bandeira foi içada. Não houve canções, hinos nada. Faltava o calor humano.
Faltava um olhar carinhoso, faltava uma voz que unisse a todos outra vez. Ele
pediu a palavra. O olharam como se fosse um estranho. Afinal agora era mesmo um
estranho. Ele humildemente foi ao centro da ferradura, tentou olhar nos olhos
de cada um para transmitir amor. Estava difícil, olhou para o céu e pediu ao
Senhor seu Deus: - Dá-me Senhor: um
coração vigilante, que nenhum pensamento vil o afaste de ti; um coração nobre,
que nenhum sentimento indigno o rebaixe; um coração reto, que nenhuma maldade
desvie; um coração generoso para servir. Senhor que cada um de nós possa amar
uns aos outros, que possamos aprender a sorrir, a cantar a dizer aleluia Senhor
por uma graça alcançada.
Um sorriso de um Lobinho se espalhou no ar, os gritos de patrulha eram
gostosamente gritados pelos escoteiros de uma maneira exemplar. Os seniores
davam risadas e abraçavam-se entre si. Agora eles contavam “causos”
sorrindo e as guias aplaudindo. Um Chefe veio correndo abraçar outro Chefe
chorando e pedindo perdão. Um zum zum se espalhou como o vento que soprava sem
destino. Ele sorriu e olhou para o céu. Obrigado meu Deus pela graça que me
destes. Permitiu-me fazer o meu melhor possível hoje E que eu almeje faze-lo
ainda melhor amanhã. Ensina-me sempre que o dever, longe de ser um inimigo, é
um amigo. Faça-me encarar até a mais desagradável tarefa, alegremente. Dê-me fé
para compreender o meu propósito nesta vida e abra minha mente para a verdade,
e enche meu coração com amor. – Era hora de partir, ele sabia que ali tudo
havia se alterado. Ele sabia que a cidade iria acompanhar, portanto era hora de
voltar.
Fez questão de abraçar a cada um em particular. Seu aperto de mão era como se
fosse fagulhas de amor e paz a jorrar no coração de cada um. No portão deu seu
último olhar. Viu uma Lobinha sorrindo e dizendo adeus. Ele sabia que aquele
adeus e o sorriso era o que sua alma precisava. Entrou em sua casa, uma pequena
lágrima apareceu e correu pela sua face até desaparecer no chão que ele pisava.
Agora era hora de partir, fechou as janelas, beijou um pequeno crucifixo que
estava no quarto de sua mãe. Lembrou-se do seu sorriso que sempre lhe deu antes
de partir. Saiu devagar pela Rua da Amizade, viu outra placa, tinham trocado.
Passou pela praça e viu que se chamava Praça do Amor. Havia cheiro de perfume
no ar, rosas sorriam para todos que passavam. A praça cheia, o povo a cantar.
Na saída uma nova placa dizia: - Bem vindos a Portal da Esperança. Um clarão
azul claro o levou de uma só vez. Ele com um sorriso lembrou-se das palavras de
um poeta: - Ainda que haja noite no coração, vale a pena sorrir
para que haja estrelas na escuridão...
Nenhum comentário:
Postar um comentário