Contos da
Jângal.
Mortimer, um
lobinho amigo do além.
Coveiro.
Numerar sepulturas e carneiros,
Reduzir carnes podres a algarismos,
Tal é, sem complicados silogismos,
A aritmética hedionda dos coveiros!
Um, dois,
três, quatro, cinco... Esoterismos
Da Morte!
E eu vejo, em fúlgidos letreiros,
Na
progressão dos números inteiros
A gênese
de todos os abismos!
Augusto
dos anjos.
Mortimer era um infeliz.
Era filho de Lomanto da Paz o coveiro do cemitério Flores Singelas. Na escola
ninguém se aproximava dele. Tinham medo. Diziam que ele falava com os mortos.
Não era verdade, mas que acreditaria nele? Sua casa ficava dentro do cemitério
e mesmo linda, pintada de azul e branco com muitos manjericões e rosas brancas
que seu pai plantava e cuidava com carinho, ninguém nunca pediu para conhecer
onde morava. Sua mãe morrera quando nasceu. Seu pai o adorava e o tratava com
carinho e um amor enorme. – Mortimer meu filho, um dia vão reconhecer que seja
onde for a nossa casa é sagrada. Mas não adiantava o pai falar - Pai! Nós não
recebemos visitas! Por quê? – Lomanto olhava seu filho e mesmo querendo
explicar que todo mundo um dia iria morar ali, ninguém gostava de tocar no
assunto. A morte sempre assustou os vivos.
Uma menina de cabelos loiros
foi transferida para sua sala. Ele a olhava e quando ela olhava para ele ficava
sem jeito e virava o rosto. No recreio ela o procurou. – Quer brincar? Mortimer
assustou. Ele no recreio era um eterno esquecido. Ninguém nunca o chamou para
brincar. Ficava sempre em um canto olhando todos correndo e sorrindo. Ela o
pegou pela mão e começou a correr – Vamos! Tente me pegar! Foi o recreio mais
lindo de sua vida. – Pai! Pai! Ele chegou correndo para contar – Pai eu agora
tenho uma amiga! Lomanto riu e abraçou seu filho. Os outros jovens da escola
olhavam o par com indiferença. Não diziam nada. O boato que corria é que se mexesse
com ele os defuntos viriam à noite em seu quarto para puxar o pé. Um dia Noêmia
o convidou para ir visitar sua alcateia. – O que é isto? Perguntou. – Uma
escola diferente. Nada de carteira. Nada de quadro negro. Lá a professora se
chama Akelá. Ela tem ajudantes. Cada um tem um nome de bichos da floresta. É
como se nós vivêssemos em uma grande floresta.
Noêmia contou muita coisa.
Mortimer ficou perplexo com o que ela contava. Havia um herói menino chamado
Mowgly. Ele se perdeu na floresta e foi adotado por uma Alcateia de lobos.
Todos eram amigos dele. Outros animais o protegiam. O Balu um urso grande e
peludo, a Baguera uma pantera negra enorme, Hati o elefante e uma grande cobra
píton chamada de Kaa. Mortimer queria saber tudo. Noêmia o convidou para ir com
ela sábado ao grupo escoteiro. Seu pai foi junto. Vestiram a melhor roupa que
usavam na missa dos domingos. Mortimer ficou com medo quando chegou lá.
Centenas de meninos vestidos de azuis e cáqui com chapelão. Ele se assustou. Sabia
que todos conheciam o Menino do cemitério. O menino que fala com os mortos.
Engano. Ninguem disse nada. Foi recebido com palmas. Mortimer chorou de
alegria.
Em casa falou para seu pai –
Pai! Eu nunca pensei que fizesse tantos amigos em um só dia! – Filho, o mundo é
bom, tem aqueles que não te conhecem e te julgam pelo que ouvem ou veem sem
olhar o coração das pessoas. Mortimer dormiu feliz. Sonhava com o próximo
sábado. Sonhava em ser mais um na Roca do Conselho. Disse para si mesmo que em
breve estaria de azul e a gritar junto a todos no Grande Uivo. Mortimer passou
a sorrir também na sala de aula. Chegava perto de muitos da classe e dizia, eu
sou lobinho, lá eles são meus amigos. São felizes como eu. Eles cantam, dançam
e sabem que a verdadeira amizade nasce de dentro do coração. Mesmo vocês não
sendo meus amigos o Balu meu protetor me disse que não importa o que pensam de
você, importa o que você pensa deles. E eu sou amigo de todos! – Toda a classe
passou a ver Mortimer como mais um deles. Não era mais o filho do coveiro.
Dizem, eu não sei e nem posso
afirmar que todos os domingos o Cemitério Flores Singelas enche de meninos que
vão lá brincar nos arvoredos, no pequeno regato que nasce atrás das montanhas e
eu soube que agora toda a cidade vê com outros olhos o lobinho Mortimer e seu
pai Lomanto da Paz. Dizem também e eu não sei se é verdade que aprenderam uma
lição com os Escoteiros. Eles e os lobinhos fazem questão da amizade. Dizem na
cidade que lá todos que entram passam a ser irmãos. Até contam em rodas por aí
que eles tem um pacto e quem entra passam a ser irmão de sangue para sempre. Agora
que Mortimer cresceu e se casou com Noêmia disto eu tenho certeza. Que tiveram
quatro filhos e Mortimer ainda mora no cemitério e é feliz eu também sei.
Escotismo é assim, quem não tem amigos lá encontra um montão.
Esqueci-me de dizer que
Mortimer hoje é o prefeito da cidade. A prefeitura vive cheia de Escoteiros e
na porta tem uma grande placa escrita – Lord Baden Powell, cidadão do mundo, O
Escoteiro Chefe Mundial e amigo e irmão de todos. Falar mais o que? Escotismo é
coisa que marca que entra em nós para sempre. Dizer que somos aventureiros que
somos Escoteiros e vivemos para ajudar o próximo é falar o obvio. Mortimer hoje
corre o mundo dando palestras. Tornou-se um professor de história e escreveu
muitos livros. Ninguem mais o chama de o amigo dos mortos, mas sim de o amigo do
mundo. Graças a Mortimer eu também sou Escoteiro e esteja ele onde estiver
receba meu abraço apertado, meu aperto de mão esquerda e meu Sempre Alerta!
Nenhum comentário:
Postar um comentário