Lendas escoteiras.
Ele era apenas um índio... Um
índio brasileiro!
Prologo: - “Porque o
meu irmão índio também me ensinou o valor da terra, o amor pelo chão e por seus
frutos”. “Nós não herdamos a Terra de nossos antecessores, nós a pegamos
emprestada de nossas crianças”. Mais uma história, mais uma lenda sobre nossos
índios. Índios do Brasil!
Ele não era de uma extirpe de índios famosos. Seus antepassados sim, mas agora
eram uma tribo de gente triste e sem futuro. Foi batizado como José Raposo.
Seus pais disseram que ele se chamava Guaraciaba, aquele que tem cabelos de
sol. Zé era um índio simples, curtido, usava um calção verde e com ele ficava
por uma semana ou mais. Apesar de jovem tinha um medo atroz de uma doença
maldita que quase acabou com sua tribo. Kerexu o pagé ainda contava belas
histórias dos índios Botocudos, quando eram fortes e famosos e habitavam a
Serra do Onça no Alto Rio Doce. Kerexu dizia ter duzentos anos, não era
verdade. Devia ter uns 90 não mais. Na tribo era o Pajé o doutor o psicanalista
e o religioso. À noitinha a meninada corria para a porta de sua Oca, e ali
ficavam esperando de butuca para contar histórias. Com seu cachimbo enorme, com
folhas de tabaco ressequidas soltava gostosos rolos de fumaça que fazia os
olhinhos da turma seguirem as letras que ele fazia com a fumaça do cachimbo.
Kerexu era uma alma boa. José Raposo o considerava como um pai.
Zé não tinha o que fazer. Zanzava para um lado e outro da aldeia e
seus arredores. Sempre de olho nas águas modorrentas do Rio Doce. Ele sabia que
terminando a estação das chuvas Anajé o Branco poderia aparecer. Eles se
conheceram quando Zé viu-os acampados próximo à cachoeira do Limão, bem abaixo
da curva da serpente. Ficou a olhar de longe os meninos brancos de chapéu longo,
de lenços no pescoço e gostava de ver o que iriam fazer. Alguém o cutucou por
trás e Zé deu um salto se preparando para a luta. Anajé riu quando viu ele se
encrespando. – Paz amigo, muita paz! E sem ele esperar o Branco lhe deu um
abraço. – Como se chama? Zé pensou dar seu nome de guerra. Guaraciaba. Mas
evitou e disse – Zé... E depois gritou orgulhoso: - Guaraciaba, o índio dos
cabelos do sol! - Muito prazer Guaraciaba, meu nome é Vado um Escoteiro, mas me
chame de Anajé, o gavião das montanhas! Assim batizado quando saltei a fogueira
no Vale das Corujas.
Ali nasceu uma amizade por toda a vida. À noite na fogueira Anajé cortou seu pulso
com a faca, repetiu o mesmo com os demais brancos da patrulha. Juntou as
junções que sangravam e disse – Guaraciaba, você e eu e os Patrulheiros da
Raposa agora somos irmãos de sangue para sempre. Guaraciaba sorriu. Nunca teve
amigos brancos e viu que os jovens de lenço e chapelão bateram palmas.
Guaraciaba os convidou para visitar a aldeia. Meu amigo Anajé, não espere
ver tendas de lona redondas feitas de pele de búfalo ou cavalos malhados a
saciarem a sede na beira do nosso rio. Não espere roupas coloridas, colares
feito de pedras preciosas, penachos de penas de pássaros que só nas mais altas
montanhas se encontram. Nada disto, nossas tradições se perderam no tempo, hoje
somos à sombra de uma famosa tribo dos Botocudos que um dia se orgulharam de
suas histórias e lendas que desapareceram com o vento. Anajé riu. – Amigo e
irmão Guaraciaba, não quero ver grandiosidades, basta o amor que vocês têm no
coração. Anajé ficou amigo de Kerexu e voltou na tribo por muitas luas.
Quando Anajé chegava ele e Guaraciaba corriam pelas campinas, pisando em flores
macias, saltando riachos de águas cristalinas, escalando montanhas e picos
próximos a Nanuque, Crenaque ou na Mata do Condor. Guaraciaba mudou. Sentiu uma
felicidade imensa. Kerexu preveniu Guaraciaba que a amizade dos dois era para
sempre, mas avisou que um dia Anajé iria desaparecer como o vento da chuva.
Anajé o levou a visitar sua cidade, o alojou em sua própria casa. Quando se
sentou à mesa com a mãe e o pai de Anajé se sentiu importante por fazer as
refeições junto aos brancos. Antes não gostava dos brancos. Zumbiara o Chefe da
FUNAI era traiçoeiro. Sempre mandava chamar o seu pai o Cacique Aritana para
dar ordens, remédios e mantimentos. O fazia com desprezo, como se estivesse
dando do próprio bolso. Mas ali, junto à família de Anajé Guaraciaba se sentiu
outro. Mesmo com o orgulho de um índio brasileiro ele sabia que seu coração era
feito de sangue vermelho como seus antepassados que nunca esqueceu.
Foi na reunião deles e foi apresentado a Tropa, a Alcateia, e Guaraciaba
chorou. Não queria demonstrar fraqueza. Índios não choram pensou. São fortes e
valentes, mas ali ele sentiu a força dos meninos de amarelos e azuis, de lenço
e chapéu grande. Sentiu uma amizade entre eles incrível. Quem sabe ele poderia
fazer isto na sua tribo? Retornou pensando em mudar. Porque não voltar no tempo
dos valentes guerreiros que nunca esqueceram os seus antepassados? Guaraciaba
casou com Avati e com ela teve dois filhos homens. Mandou vinte guerreiros
estudar na capital. Dois voltaram doutores. A tribo mudou. Agora ela tinha uma
escola e um posto de saúde e Guaraciaba corria pelos campos, pelos rios e
riachos a procura dos gazeteiros. Dava um sermão e eles de cabeça baixa
voltavam para a escola. Anajé disse a ele: - Guaraciaba um dia não vou voltar.
Tenho que partir para longe em busca do meu destino. Mas quero que lembre que
meu sangue está junto com o seu. Em espirito estarei com você para sempre.
Anajé partiu. Muitas luas se passaram e Guaraciaba ficou doente. Seus doutores
e Kerexu fizeram tudo para salvá-lo, mas não conseguiram. Os filhos de
Guaraciaba agora adultos juraram ao seu pai que os antepassados dos Botocudos
iriam se orgulhar na nova tribo. Uma semana depois Guaraciaba estava nas
últimas. Seus olhos quase não abriam. A taba cheia de índios rezando. Alguém
pediu passagem e eis que Anajé apareceu. Deu um abraço em Guaraciaba. – Meu
amigo, eu estava longe e uma noite Caapora e Catu me apareceram em sonhos.
Disseram que você precisava de mim e sumiram em uma nuvem branca no céu. Aqui
estou e vim trazer para você o meu amor Escoteiro. Nossos sangues se cruzaram e
nossa amizade irá viver além do firmamento e na terra dos seus antepassados.
Quando você partir o sol vai sorrir, quando você chegar ao meio do céu Tupanã o
Deus do Universo vai abraçar você. Então Tupanã vai dizer – Aqui Guaraciaba
você vai esfriar sua sede, aqui o fogo do céu vai aquecer seu corpo quando
sentir frio, aqui você vai correr pela terra dos seus pais.
Guaraciaba morreu sorrindo. A tribo começou a cantar aos sons de tambores,
chocalhos, guizos e cabaças. No céu um trovão anunciou a chegada de Guaraciaba
junto a Tupanã. Anajé partiu três dias depois. Abraçou Piatã e Apuã os
filhos de Guaraciaba – Estarei com vocês em todas as horas e em todos os
momentos. Pensem em mim quando precisarem de ajuda. Anajé colocou seu chapéu de
abas largas, firmou seu lenço verde e amarelo no pescoço, amarrou sua bota
negra e alçou sua mochila verde nas costas. Em uma simples jangada atravessou
as águas tranquilas do Rio Doce levando consigo as saudades de um índio que
sempre amou!
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