Lendas Escoteiras.
As aparências enganam.
(baseado em fatos reais)
Surgiu como um fantasma em nosso Grupo Escoteiro. 1962? Pode ser. Ele
não falava, gritava. Achava que todos naquela sala eram seus empregados. Deixei
o que estava fazendo e olhei para ele. – Gritou: - Quem é o Chefe aqui? Meus
amigos da diretoria olharam para mim preocupados. Melhor dizer que era eu. –
Sou eu disse! – Ele me olhou enviesado. Era forte, alto com uma enorme cicatriz
da orelha aos lábios. Briga na certa pensei. Cortado por faca! – Este é meu
filho! Vai ser Escoteiro. Não o trate bem, Ele precisa aprender a ser homem. Exigem
dele tudo, pois não gosto de meninos chorões. Não vou vir buscá-lo. Ele tem de
aprender a chegar em casa sozinho. Aqui vocês são responsáveis por ele! – Deu
meia volta e sumiu pela porta da sede do Grupo Escoteiro. Fiquei pasmado, os
amigos da diretoria também.
Olhei para o menino na porta. Onze anos? Pode ser. Raquítico, cabelos
negros encaracolados. Não sorria. Olhava para mim como se eu fosse mais um desafio
em sua vida. E agora? Não era assim a matricula em nosso grupo Escoteiro.
Mandar o menino embora? Era o que devia ter feito e não o fiz. Mandei o garoto
sentar. Conversei calmamente com ele. – Seu pai é assim? Ele respondeu – Meu
pai é o que é e eu sou o que sou. Quando começo? - Pensei com meus botões. Por
hoje sim. Amanhã não sei. Chamei o Chefe dos escoteiros e expliquei da melhor
maneira possível. Ele me olhou sorrindo e disse: - Está com medo Chefe? – Sem
resposta. Não iria mostrar o que sentia. Olhando o menino que estava em posição
de sentido olhando para mim, muito circunspecto achei que teria que ser mais
sensato. Só completei ao Chefe Escoteiro: O pai dele vai aparecer. Vamos ver no
que vai dar.
No final da reunião Dinho (apelido do
menino) foi embora sozinho. Antes de ir chegou próximo a mim, fez pose militar
e me deu um Sempre Alerta bem postado e falado. Espantei-me com ele no seu
primeiro dia. Fui para casa tentando controlar os nervos. Fui a pé pensando. Cheguei
à conclusão que não haveria uma segunda vez. Respeito é bom e eu gosto. Mal
virei à esquina e o vi no bar do Chico. Mesas e cadeiras espalhadas debaixo de
uma castanheira antiga, onde sempre me reunia com amigos. Ele bebericava uma
cerveja. Levantou-se e fez sinal para aproximar. Ora, ora! Fala-se no tinhoso e
ali estava ele. - Se não desse bola seria mal educado, se desse atenção poderia
ouvir o que não queria. Enfim entre o sim e entre o não me aproximei. Ficamos
conversando por horas. Ele me contou causos e causos. Já estava ficando
“borracho” e precisava ir para casa. Saí dali impressionado com que ouvi e vi.
Jiparanã se tornou um grande amigo do qual jamais esqueci.
Um
dia chegou à sede, aproximou de mim e perguntou: Quando posso fazer meu uniforme
e onde compro o chapéu e os distintivos? Tentei explicar para ele as normas.
Ele teria de passar por elas. – Bolas para as normas – disse. E na semana
seguinte apareceu de uniforme surpreendendo a todos nós. Resolvi relevar, daria tempo ao tempo. Pensei
que breve ele iria submergir. Isto não aconteceu. Por duas vezes sem avisar se
inscreveu em cursos na capital e os fez com seu rompante habitual. Todos nós do
grupo passamos a gostar dele, era um excelente escotista. Dedicado, organizado
e prestativo. Logo assumiu a Tropa Sênior e os jovens o adoravam. Muitos jovens
ficavam horas no seu estabelecimento comercial (açougue) conversando e
aprendendo com ele.
Surpreendeu-me nas atividades ao ar livre e
nos grandes acampamentos. Era um excelente mateiro. Os seniores o admiravam
devido ao seu estilo e os conhecimentos de sobrevivência na selva. Isto fez
dele um herói e garanto que não me senti ofendido. Eu sabia que breve iria
embora daquela cidade. Seria ótimo contar com ele para me substituir. Seu gênio
foi aos poucos sendo contido. Um dia alguém gritou para ele que suas pernas
eram lindas. Usava a calça curta. Ele se voltou e disse: - Você acha bonita?
Deve ser igual a da sua mãe! Porque não vem aqui olhar? – Ninguém respondeu. Um
silêncio sepulcral. Sua cicatriz, seu bigode, sua altura, sua força não era
para ser arrostada. Meses depois fui embora. Dois anos depois recebi um
telegrama. - Chefe Jiparanã foi preso e condenado a quinze anos de prisão. Não
pestanejei, pedi licença na minha empresa por cinco dias, peguei o trem noturno
e voltei a minha antiga cidade.
O meu amigo Capitão Marlon me contou a história. Jiparanã estava em seu
açougue e chegaram dois bêbados rindo e debochando, falando que ele um
autêntico bicha e homossexual. Riram e completaram: seus escoteiros aprendem
com você a fazer assim? Você pode imaginar o que aconteceu. Jiparanã deu uma
tremenda surra nos dois. Foram parar no hospital. A história poderia ter terminado
ali, mas os dois borrachos em uma noite o atacaram em uma esquina, e mesmo
ferido a faca em diversos lugares, matou um deles torcendo seu pescoço. Claro
que foi legítima defesa. Mas o que foi morto era de uma família rica e
contratou um advogado famoso para assessorar o promotor. O juiz não levou em
consideração o passado de Jiparanã. Ele sabia que ele era Escoteiro. Deu-lhe quinze
anos com possibilidade de sair em cinco por bom comportamento. Fui visitá-lo na
penitenciária. Sorridente, alegre me recebeu com regozijo, me abraçando e
apresentando aos amigos da prisão.
Senti-me
forasteiro ali. Conversamos por horas. Antes de partir o visitei outra vez e
ele me disse que recebera uma carta da Direção Nacional, suspendendo-o das suas
atividades escoteiras. Eles fizeram um inquérito e acharam melhor que não
vestisse mais o uniforme e participar de atividades com os jovens. O Chefe do
Grupo me mandou uma correspondência, um ano depois, comentando o caso de
Jiparanã. Saiu da cadeia, e não voltou mais ao escotismo. A Direção Nacional o
absolveu, mas colocou ressalva na sua participação. Os seniores estavam com
nova chefia, mas apesar da proibição, Jiparanã ainda fazia atividades com eles,
sem uniforme. Sua arrogância foi esquecida. Agora cativante era outro Chefe. Seu
filho passou para os seniores e depois Pioneiro. Cuidava do açougue do pai.
Não
tive mais notícias. Minha vida mudou muito. Jiparanã deixou saudades. Foi para
mim um caso especial. Onde estiver e se ainda estiver vivo (deve estar com mais
de 80 anos) espero que tenha alcançado a felicidade que sempre mereceu. Fico
com saudades sempre que me lembro dele, Jiparanã, um saudoso valente cujo
espirito Escoteiro era verdadeiro e amava a seu modo o escotismo. Nem sempre conhecemos
os bons e os maus em profundidade. Se merecerem fazemos referências se são
amigos contamos histórias.
Nota de rodapé: - Tive a honra de conhecer
milhares de chefes em minha vida. Todos eles tiveram sempre alguma coisa para
me ensinar. Em tempo algum nos desentendemos. Um respeito existia e nunca fora
quebrado. Jiparanã foi um amigo que nunca esqueci. Saudades muitas saudades
dele.
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