Lendas Escoteiras.
Margarida, um jagunço do Sertão.
(Uma história quase real).
- Conheço o caminho disse Boca Larga.
Quando Escoteiro eu e minha patrulha entramos na trilha do Lobo e em menos de cinco
horas saímos próximo a Malacacheta. Pela estrada do Rei iremos demorar mais de
doze horas. Cento e cinquenta quilômetros só de subida. – Cabeçudo o sub
Monitor concordou. Ele também já tinha percorrido a trilha do lobo. Unha Grande
o intendente ficou em duvida. – Tem quanto tempo que vocês passaram por lá?
Dois três quatro anos? Será que a trilha ainda existe?
- Nariz Longo
o Monitor pensava no que todos diziam. Cabeludo o cozinheiro nunca dizia nada,
sempre calado. - Se formos iremos em cinco. Dedo Duro não vai, seu pai vai
viajar e resolveu levá-lo consigo. Esta jornada não estava no programa e foi o
Chefe Sansão quem nos disse que soubera de um novo Grupo Escoteiro em
Malacacheta. – Porque não vão lá e confirmem se realmente tem um Grupo
Escoteiro? Afinal o Acampamento distrital será daqui a dois meses e mais um
grupo será ótimo.
Ninguém nunca tinha
ido a Malacacheta. Seu Tonico motorista do ônibus foi quem nos contou como era
o caminho. – Olhe são quase cento e cinquenta quilômetros. O ruim é que é
subida e descida. Tem a Serra do Quati que têm bem uns quatro quilômetros só de
subida. Nariz Longo pôs em votação. Vamos pela estrada ou pela trilha do lobo?
Todos votaram pela trilha. Se fosse verdade o que Boca Larga disse iriam fazer
o trecho todo em menos de cinco horas. Tudo combinado, ração B para três dias,
duas barracas de duas lonas, um caldeirão e uma caçarola, facão e machadinha.
Às oito da noite de sexta feira partimos. A trilha margeava o Rio Verde um velho
amigo conhecido. Lá pelas duas da manhã paramos. No céu uma noite cheio de estrelas
e uma linda lua. Não montamos barraca. Impossível chover aquela noite. Melhor
dormir sob as estrelas.
Nossa sopinha
Estava quase no ponto. Todo mundo com uma fome danada. A madrugada ia brava e
foi então que fomos surpreendidos. Apareceu de surpresa sem se anunciar. Estava
ali a nossa frente em pé. Um homem magro, barbudo, uma fileira de dente todos
cariados. Usava perneiras, pois era uma região espinhosa. Chapéu de couro. No
ombro seu fuzil inseparável que ele chamava de Loló. Amarrado na barriga um
enorme colt 45. Depois fiquei sabendo que em cada perna tinha um punhal
escondido. Quem seria? Todos nós ficamos preocupados.
Posso me adentrá? Falou baixinho. Olhamos espantados. Ele sério. – Me chamo
Margarida, dá para comer com vocês? – Claro eu disse. Ficamos de olho e atento
no que ele ia fazer. Coragem? Nada disto, mas dizem que ficar alerta faz bem em
toda e qualquer ocasião. Sentou tirou um prato sujo do seu bornal e Boca Larga
encheu. Comeu feito um danado. Não pediu mais. Só água. Tínhamos café no bule
esquentando no canto do fogão tropeiro. Bebeu com gosto. – Falou pouco. Meu
nome é Margarida, meu pai me deu. Nunca mudei. Por causa dele matei muita
gente. Se me chamam sem rir, tudo bem se derem um risinho esquento o bucho
dele. – Olhei para Unha Grande e ele piscou. Queria rir. Meu Deus! Não deixe
ele rir!
- Não precisam ficar com medo. Me trataram bem. Vou embora lá pelas cinco da
manhã. Podem dormir tranquilos. Enrosquei em minha capa preta em volta do fogo.
– Você nasceu onde? Perguntei. – Em Barra Dourada. Próximo a nascente do
Paraopeba. Lembrei-me do rio. Cascalho imundo. Pobre do rio. Estragaram ele
tentando achar um ouro que não tinha. Até hoje as máquinas estão lá sujando o
rio. Cabeludo queria saber mais. – Matou quantos Senhor Margarida? – Não me
chame de Senhor. Senhor é o Senhor seu pai! – Putz grila! Pensei. Mas se quer
saber matei mais de dez. Muitos porque riram do meu nome. Maldita hora que meu
pai me batizou assim. Queriam uma menina e nasci macho. Agora não tenho onde
ficar. A policia de captura sempre está atrás de mim.
Fiquei calado. Nariz Longo me olhava e piscava os olhos. Margarida desconfiou.
- Porque esta piscação? Nada Seu Margarida. Nariz Longo tem um defeito na
pálpebra. – E que merda é esta de pálpebra? Danou-se! Custei para explicar. Já
estava tremendo. Margarida passou boa parte da noite sentado. Eu não consegui
dormir. Fingia que dormia. Às cinco da manhã juntou suas coisas, um bornal que
devia levar suas balas, seu fuzil e já ia partir quando dei ele um farnel de
biscoito de polvilho. Agradeceu, ficou em posição de sentido, gritou Sempre
Alerta e partiu sem sorrir. Consegui cochilar até as seis. Ouvi um tropel de
cavalos. Cinco soldados e um Capitão. Deviam ser da tal policia de captura.
Ninguém apeou. O Capitão perguntou gritando: – Viram um jagunço magro, barbudo,
armado até os dentes por estas bandas? E agora? O Escoteiro tem uma só palavra
falar o que? – Não Senhor. Chegamos aqui às duas da manhã. Só deu para fazer
uma sopinha um café e já íamos partir. – Vão para onde? Malacacheta Senhor
Capitão. Fazer o que lá? Um Chefe Escoteiro nos convidou. Nos olhou como quem
não acredita. – E tem Grupo Escoteiro lá? – Nosso Chefe Sansão disse que sim!
Nos olhou ressabiado deu até logo e partiu. Pegamos as bicicletas, arrumamos
tudo e quando íamos partir um barulho no mato e surgiu Margarida. – Ainda bem
que não disseram nada, falou. Estava com a Loló (fuzil) armada e se dissesse
que me viram iam levar uns tiros no rabo!
Foi embora cantando. ¶ “Sordado marvado, sai da carçada que lá vai porva!” ¶.
Resolvemos voltar para nossa cidade. O Chefe Sansão que nos desculpasse. Para
dizer a verdade eu estava com as calças toda molhada e outros com elas
borradas. Não dava mais para prosseguir. Nunca mais ouvimos falar de Margarida.
Do capitão não. Era famoso. Quando a cadeia estava cheia, pegava uns
ladrõezinhos de fancaria colocava em fila e saiam pelas ruas da cidade e fazendo-os
gritarem – Roubei galinha! Roubei o porquinho da dona Noêmia. Bebi demais, sou
pinguço! Depois soltava. Pois é. Seis meses depois recebemos a visita dos
Escoteiros de Malacacheta. Não acreditaram em nossa história, mas conheciam
Margarida. Ficamos amigos e fomos varias vezes na cidade deles a convite. Bons
tempos, tempos que uma bicicleta ou um Vulcabrás nos pés nos levava a aventuras
inimagináveis. E Margarida? Sumiu no mundo.
Nota de rodapé: Lendas Escoteiras.
Margarida, um jagunço do Sertão.
(Uma história quase real).
- Conheço o caminho disse Boca Larga.
Quando Escoteiro eu e minha patrulha entramos na trilha do Lobo e em menos de cinco
horas saímos próximo a Malacacheta. Pela estrada do Rei iremos demorar mais de
doze horas. Cento e cinquenta quilômetros só de subida. – Cabeçudo o sub
Monitor concordou. Ele também já tinha percorrido a trilha do lobo. Unha Grande
o intendente ficou em duvida. – Tem quanto tempo que vocês passaram por lá?
Dois três quatro anos? Será que a trilha ainda existe?
- Nariz Longo
o Monitor pensava no que todos diziam. Cabeludo o cozinheiro nunca dizia nada,
sempre calado. - Se formos iremos em cinco. Dedo Duro não vai, seu pai vai
viajar e resolveu levá-lo consigo. Esta jornada não estava no programa e foi o
Chefe Sansão quem nos disse que soubera de um novo Grupo Escoteiro em
Malacacheta. – Porque não vão lá e confirmem se realmente tem um Grupo
Escoteiro? Afinal o Acampamento distrital será daqui a dois meses e mais um
grupo será ótimo.
Ninguém nunca tinha
ido a Malacacheta. Seu Tonico motorista do ônibus foi quem nos contou como era
o caminho. – Olhe são quase cento e cinquenta quilômetros. O ruim é que é
subida e descida. Tem a Serra do Quati que têm bem uns quatro quilômetros só de
subida. Nariz Longo pôs em votação. Vamos pela estrada ou pela trilha do lobo?
Todos votaram pela trilha. Se fosse verdade o que Boca Larga disse iriam fazer
o trecho todo em menos de cinco horas. Tudo combinado, ração B para três dias,
duas barracas de duas lonas, um caldeirão e uma caçarola, facão e machadinha.
Às oito da noite de sexta feira partimos. A trilha margeava o Rio Verde um velho
amigo conhecido. Lá pelas duas da manhã paramos. No céu uma noite cheio de estrelas
e uma linda lua. Não montamos barraca. Impossível chover aquela noite. Melhor
dormir sob as estrelas.
Nossa sopinha
Estava quase no ponto. Todo mundo com uma fome danada. A madrugada ia brava e
foi então que fomos surpreendidos. Apareceu de surpresa sem se anunciar. Estava
ali a nossa frente em pé. Um homem magro, barbudo, uma fileira de dente todos
cariados. Usava perneiras, pois era uma região espinhosa. Chapéu de couro. No
ombro seu fuzil inseparável que ele chamava de Loló. Amarrado na barriga um
enorme colt 45. Depois fiquei sabendo que em cada perna tinha um punhal
escondido. Quem seria? Todos nós ficamos preocupados.
Posso me adentrá? Falou baixinho. Olhamos espantados. Ele sério. – Me chamo
Margarida, dá para comer com vocês? – Claro eu disse. Ficamos de olho e atento
no que ele ia fazer. Coragem? Nada disto, mas dizem que ficar alerta faz bem em
toda e qualquer ocasião. Sentou tirou um prato sujo do seu bornal e Boca Larga
encheu. Comeu feito um danado. Não pediu mais. Só água. Tínhamos café no bule
esquentando no canto do fogão tropeiro. Bebeu com gosto. – Falou pouco. Meu
nome é Margarida, meu pai me deu. Nunca mudei. Por causa dele matei muita
gente. Se me chamam sem rir, tudo bem se derem um risinho esquento o bucho
dele. – Olhei para Unha Grande e ele piscou. Queria rir. Meu Deus! Não deixe
ele rir!
- Não precisam ficar com medo. Me trataram bem. Vou embora lá pelas cinco da
manhã. Podem dormir tranquilos. Enrosquei em minha capa preta em volta do fogo.
– Você nasceu onde? Perguntei. – Em Barra Dourada. Próximo a nascente do
Paraopeba. Lembrei-me do rio. Cascalho imundo. Pobre do rio. Estragaram ele
tentando achar um ouro que não tinha. Até hoje as máquinas estão lá sujando o
rio. Cabeludo queria saber mais. – Matou quantos Senhor Margarida? – Não me
chame de Senhor. Senhor é o Senhor seu pai! – Putz grila! Pensei. Mas se quer
saber matei mais de dez. Muitos porque riram do meu nome. Maldita hora que meu
pai me batizou assim. Queriam uma menina e nasci macho. Agora não tenho onde
ficar. A policia de captura sempre está atrás de mim.
Fiquei calado. Nariz Longo me olhava e piscava os olhos. Margarida desconfiou.
- Porque esta piscação? Nada Seu Margarida. Nariz Longo tem um defeito na
pálpebra. – E que merda é esta de pálpebra? Danou-se! Custei para explicar. Já
estava tremendo. Margarida passou boa parte da noite sentado. Eu não consegui
dormir. Fingia que dormia. Às cinco da manhã juntou suas coisas, um bornal que
devia levar suas balas, seu fuzil e já ia partir quando dei ele um farnel de
biscoito de polvilho. Agradeceu, ficou em posição de sentido, gritou Sempre
Alerta e partiu sem sorrir. Consegui cochilar até as seis. Ouvi um tropel de
cavalos. Cinco soldados e um Capitão. Deviam ser da tal policia de captura.
Ninguém apeou. O Capitão perguntou gritando: – Viram um jagunço magro, barbudo,
armado até os dentes por estas bandas? E agora? O Escoteiro tem uma só palavra
falar o que? – Não Senhor. Chegamos aqui às duas da manhã. Só deu para fazer
uma sopinha um café e já íamos partir. – Vão para onde? Malacacheta Senhor
Capitão. Fazer o que lá? Um Chefe Escoteiro nos convidou. Nos olhou como quem
não acredita. – E tem Grupo Escoteiro lá? – Nosso Chefe Sansão disse que sim!
Nos olhou ressabiado deu até logo e partiu. Pegamos as bicicletas, arrumamos
tudo e quando íamos partir um barulho no mato e surgiu Margarida. – Ainda bem
que não disseram nada, falou. Estava com a Loló (fuzil) armada e se dissesse
que me viram iam levar uns tiros no rabo!
Foi embora cantando. ¶ “Sordado marvado, sai da carçada que lá vai porva!” ¶.
Resolvemos voltar para nossa cidade. O Chefe Sansão que nos desculpasse. Para
dizer a verdade eu estava com as calças toda molhada e outros com elas
borradas. Não dava mais para prosseguir. Nunca mais ouvimos falar de Margarida.
Do capitão não. Era famoso. Quando a cadeia estava cheia, pegava uns
ladrõezinhos de fancaria colocava em fila e saiam pelas ruas da cidade e fazendo-os
gritarem – Roubei galinha! Roubei o porquinho da dona Noêmia. Bebi demais, sou
pinguço! Depois soltava. Pois é. Seis meses depois recebemos a visita dos
Escoteiros de Malacacheta. Não acreditaram em nossa história, mas conheciam
Margarida. Ficamos amigos e fomos varias vezes na cidade deles a convite. Bons
tempos, tempos que uma bicicleta ou um Vulcabrás nos pés nos levava a aventuras
inimagináveis. E Margarida? Sumiu no mundo.
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