A FANTÁSTICA EPOPÉIA DA ALCATEIA ENCANTADA
O abutre Chill conduz a noite incerta
E que o morcego Mang ora liberta -
É esta a hora em que adormece o gado,
Pelo aprisco fechado.
É esta a hora do orgulho e da força
Unha ferina, aguda garra.
Ouve-se o grito: Boa caça aquele
Que a Lei d Jângal se agarra”.
Canto noturno da Jângal.
Conheci a chefe Tininha na metade da década de oitenta. Na época dirigia e atuava na equipe de adestramento regional e contribuía na direção e participação de cursos diversos. Foi um período raro, pois passava muitos fins de semana no Campo Escola, onde habitei fartamente por anos e anos.
Não só nós, dirigentes ou membros de uma equipe, mas os alunos inclusive se sentiam numa doce elevação do espírito, como se fosse um momento mágico. O desenrolar de um curso nutria conotação máxima e o aproveitamento era total.
Pelas minhas lembranças tive a oportunidade de conhecer pelo menos 1.000 escotistas cujo tempo curto, nos uniu em palestras, jogos e troca de idéias para um aprendizado sadio e virtuoso dos ensinamentos de Baden Powell.
Tininha quando a vi pela primeira vez, devia ter aproximadamente 28 anos. “Bem pesada”, e proporcionalmente tinha uma aparecia harmônica. Conseguia manter uma agilidade que atraía um entusiasmo nos demais. Altura razoável, sempre com um sorriso, cabelo preto curtos, vestia sobriamente o traje escoteiro, sempre bem arrumada sem afetação.
No primeiro curso conversamos pouco. Fiquei sabendo que era Akelá de um Grupo de outro bairro, e estava no movimento há mais de 10 anos. Não teve oportunidade de chegar a Insígnia, mas este era seu sonho.
Alguns anos depois, participava de um CIM, na época Curso da Insígnia da Madeira ramo lobinhos, e lá reencontrei Tininha. Vi que seu objetivo estava sendo alcançado. Como tinha obrigação de poucas palestras, nas horas livres conversávamos banalidades.
Narrou de forma sucinta a historia do seu grupo e alcatéia. Estavam em um bairro de classe media alta, e vários fatores implicavam no desenvolvimento pleno da alcatéia. Os pais nunca pediam e sim exigiam como se os filhos estivessem em um colégio de elite, pago e que eles pudessem decidir o programa e o método. Era, portanto uma situação peculiar e emblemática. Talvez única para meus conhecimentos.
Não falamos mais. Não havia tempo. Era um curso corrido sem vagares e isto era bom. Pouco tempo e precisava ser aproveitado. Quando mais vigília melhor o aproveitamento. Ao final não vi Tininha e mais dois anos se passaram.
Num sábado comum, sem nada importante, durante as reuniões das sessões, estava eu cachimbando em um canto do pátio (naquela época tinha este horrível vício) e para surpresa adentrou Tininha, uniformizada, sorrindo e me cumprimentando. Notei que portava o lenço da Insígnia.
Após um dialogo interessante, Tininha me contou as agruras e benesses que passou no grupo de origem. Um episódio em particular mudou sua maneira de pensar e de como enfrentar uma dificuldade real. No inicio acreditou que conseguiria depois a circunstância a levou a refletir que suas forças seria desiguais. Palavras da Tininha:
- Olhe chefe, em nosso programa anual, conforme uma idéia lançada pelo senhor no último curso, planejamos fazer um acantonamento com a alcatéia de 3 dias, em local aprazível, próximo a Mata Atlântica, um lindo sítio, muito agradável, gentilmente cedido por um dos pais. Na primeira reunião com os progenitores, algumas mães se opuseram ao programa dizendo ser ele perigoso e arriscado e se não mudássemos de local, seus filhos não iriam.
O fato mais preocupante para elas (as mães) foi de que ficaríamos acampados em barracas, próximo a casa sede, bem próximo a mata. Mas o que vimos quando lá chegamos que era um bosque gramado e cheio de apetitosos locais para uma mística perfeita, inclusive com uma Pedra de Conselho e pequena gruta próxima. Acreditei que ali os lobinhos poderiam plenamente viver as peripécias de Mowgli.
Não eram os que elas pensavam. Entendi que o assunto não deveria ter continuidade. “Era malhar em ferro frio”. A metade concordou em permitir à ida dos seus filhos a outra não. No final, quatro foram irredutíveis, mas aceitaram a participação dos rebentos, exceto a maioral que iniciou a discussão.
O Chefe do Grupo não disse sim e nem não. Fiquei com minhas três assistentes plenamente sós. Disse a elas que se aceitássemos a mudança, não teríamos mais liberdade no futuro para programar conforme preceitos aprendidos. Nossa responsabilidade já era sobejamente conhecida, pois não era o primeiro acantonamento feito. Todas nós possuíamos filhos e nunca iríamos arriscar nossos lobinhos em uma atividade perigosa.
Possuíamos uma alcatéia mista, com 11 lobinhos e 16 lobinhas. Acima dos 24 regidos pelo POR. Achava que era uma ótima alcatéia. Vários lobinhos e lobinhas chegando a Cruzeiro do Sul e pelo menos 5 fazendo a Trilha Escoteira. Nossa lista de espera passava de 28 pedidos de inscrição. Não sei o porquê o grupo deixava de instituir a segunda alcatéia.
Bem, era férias de julho, o tempo nem quente nem frio em uma manhã linda de sol, lá estávamos com a “lobada” se extasiando em armar barracas, gentilmente cedidas pela tropa escoteira. Parecia que a amálgama seria desordenada. Não era. Tudo tinha uma razão de ser. Cada matilha aprendeu a fazer fazendo a colocar em pé, uma barraca para 6 lobinhos. Não ensinávamos. Entregamos a barraca e eles faziam.
Era do método escoteiro, mas porque não ali? Pelo que estávamos vendo era uma alegria só e os resultados surpreendentes. Quase todos conseguiram, algumas matilhas levou mais tempo, mas faltava apenas um aperto ali e aqui que nós chefes o faríamos antes da noite.
A Chefia era formada por mim, três assistentes e dois casais de pais que se prontificaram a se responsabilizar pela intendência e refeições. O primeiro dia foi cheio de energia e quando imitamos uma sessão da Alcatéia de Mowgli a discutir na Pedra do Conselho a assistente informou que Shere Khan, o turuna tinha mudado seu campo de caça e foi “prear” por outros montes.
A caçada a Chere Khan, o turuna foi liderada pelo Lobo Gris. Uma aventura sem igual. Mais tarde com a dança de Kaá, a festa foi geral. À noite brincamos e jogamos. Dois jogos um calmo e um cheio de mistério fez com que todos ficassem preocupados com o aparecimento de Shere Khan a qualquer momento.
Sentados ou deitados na grama em círculo, após diversas canções atiladas, estava a contar parte da história da jângal e dizia – Olhem quando Mowgli não estava aprendendo, sentava-se ao sol para dormir. – Os bocejos continuaram aqui e ali. A “lobada” estava extenuada. – Mesmo assim continuei: Urra, Urra, rosnou Bagheera entre dentes. Urra que tempo virá em que esta coisinha nua te fará urrar noutro tom...”
Não adiantava continuar. Agora alguns já cochilavam sentados. O sono chegara. Junto com as assistentes colocamos todos eles para dormir nas barracas. Com uma participação pequena, fizemos com eles uma oração para agradecer o dia e nossas atividades. Não houve algazarra e em minutos o silencio era total. A noite prometia e um céu estrelado dizia para dormirmos tranqüilas. Eu e as assistentes fomos para a nossa barraca, e os pais ficaram na Casa Sede.
Acreditei não precisar montar uma atalaia noturna. O proprietário nos confirmou da impossibilidade de estranhos ao local. Era todo murado e com um grande portão de aço com chaves e cadeados. Acreditamos. Dormimos como anjos.
Pela manhã, acordamos a “lobada”. 4 deles não estavam na barraca. Seus materiais de dormir e mochilas também não estavam. “Deus do Céu!” pensei. Chamamos os pais na casa sede. Telefonamos ao chefe do Grupo. Eu sempre fui uma pessoa calma, mas estava com os nervos a flor da pele. Tremia e pensava no pior. Fiz uma oração e pedi a Deus para nos ajudar.
Uma das assistentes continuou a programação com os demais lobinhos. Eu estava totalmente “perdida”. Nunca pensei que fosse acontecer comigo. Como? O que aconteceu? Ora, estávamos bem próximo a mata Atlântica. Poucos se arriscavam a entrar nela. Agora nem eu. Pensei na negativa das mães da realização da atividade. Seria uma bomba! Iria sofrer conseqüência inevitáveis.
O Chefe do Grupo chegou. Era calmo e ponderado. Em momento algum fez recriminações. Tudo tinha o seu tempo. Ficou ciente de tudo. Antes de chamar os Bombeiros e o salvamento ligou para uma das mães para solicitar que avisasse as outras e virem para o sítio o mais tardar. Narrou o acontecido. Pediu para manter a calma e dizer a todas que tudo seria resolvido a contendo.
Ela riu e disse para não se preocupar. A mãe que foi contra a realização do Acantonamento, convenceu a todas nós a darem um susto na chefia da alcatéia principalmente a mim. Foram na calada da noite e sem ninguém perceber entraram no sítio (possuíam o chave do portão, e como conseguiram não sei) levando os filhos em completo silencio.
Espantoso! Pensou o Chefe do Grupo. Que falta de responsabilidade. Disse a ela que avisasse as demais que se não trouxessem seus filhos imediatamente, ele daria parte a policia que os lobinhos tinham sido seqüestrados. Não importava se eram as mães, pois tinha em poder as autorizações assinadas e a responsabilidade era dele.
Uma hora depois elas chegaram. Não houve maiores explicações e nem as pedimos. Foram-se. Os filhos lobinhos ficaram. Faz parte de um grande jogo disse ele aos lobinhos. Os quatro lobos foram à cidade dos homens e voltaram. Aplausos, jogos, histórias, mística até mesmo um pequeno passeio dentro da mata com um guia contratado.
Olhe chefe disse, passei por poucas e boas. A palavra arrogância não a conhecia em toda sua plenitude. Aprendi muito depois disto. Mas continuo acreditando que o movimento é maravilhoso e muitos pais sabem de sua importância. Vi e senti na própria pele a participação de vários deles se solidarizando e prestativos se colocaram a disposição para outros acantonamentos ou excursões.

Fiquei lá mais um ano. Minha família mudou para este bairro, e agora estou aqui. Pedindo uma vaga e comigo trago uma transferência. O senhor me aceita?
E quem quiser que conte outra...
“As estrelas desmaiam, concluiu o Lobo Gris, de olhos erguidos para o céu, onde me aninharei amanhã? Porque Dora em diante os caminhos são novos...”
Kipling
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