sábado, 3 de dezembro de 2011

JOÃO PEÇANHA - O FAMOSO CHEFE BORBOLETA


João Peçanha – o famoso Chefe Borboleta

“Amigo: alguém que sabe de tudo a teu respeito e gosta de ti assim mesmo."
(Elbert Hubbard)

O nome dele era João Peçanha. Nós o chamávamos de Borboleta. Nada de eufemismo não. Também não tinha nada de afeminado. Não sei por que do apelido, mas era comum em nosso Grupo Escoteiro. Não perdoávamos ninguém.

Um dia apareceu na sede com o livro do Velho Lobo na mão, O Guia do Escoteiro (Por volta de 1920, o “Velho Lobo” denominação adotada pelo Almirante Benjamin Sodré começa a publicar na revista “Tico-Tico” uma coluna regular denominada “Escotismo”. A partir desse material o Velho Lobo publica em 1925 o Guia do Escoteiro, reeditado em 1932, 1943, 1954 e em 1994, neste último ano, pelo Centro Cultural do Movimento Escoteiro).

Disse que tinha comprado de um amigo e que este ganhou de outro. Nada contra. Para nós naquela época era nossa Bíblia. Pediu para olhar nossas atividades e ali ficou por uns dois meses. Conseguiu conquistar amizades e eu mesmo tinha por ele enorme consideração.

Pelos meus cálculos, devia ter entre 28 e 30 anos. Era até simpático, mas se vestia pobremente (quando aceito como escotista, demorou um bom tempo para adquirir o uniforme completo) Procurou-me um dia se podia participar. Disse-me que conhecia de cor e salteado tudo que o Velho Lobo escreveu no livro. Podia fazer os nós de olhos fechados e sabia todas as provas ali descritas. Eu nesta época era escotista de tropa e “sapeava” nas horas vagas nos seniores. Eles sempre me convidavam para suas atividades.

Conversei com o Batista, nosso Chefe de Grupo e ele que também ficou amigo do Borboleta concordou de pronto. Ficamos sabendo que ele tinha uma pequena oficina de conserto de bicicletas e morava com a mãe num bairro afastado.

Foi uma grande surpresa. Na primeira atividade da tropa Sênior (onde ele foi como assistente) demonstrou um conhecimento que nos deixou boquiabertos. Nunca tínhamos visto nada igual, pois se declarara nunca ter sido escoteiro em sua vida. Sabia como ninguém aplicar amarras, dar nós, mostrou-nos novas técnicas de armar barracas de duas lonas suspensas, sabia como construir pioneirias, para nós todas novas, nadava como um peixe, nunca se cansava, era o primeiro a levantar (sempre cantando o Ra-ta-plã) e o último a se deitar.

O que marcou mesmo o chefe Borboleta foi uma excursão de 8 dias feita nas férias de janeiro (lá pelos idos de 1959) onde iríamos percorrer aproximadamente 450 quilômetros entre ida e volta, por 4 cidades. Dois motivos nos prendiam nesta jornada. Ambos merecedores de toda a atenção e prometia e muito no nosso currículo que não anotávamos a não ser gravar na memória.

O primeiro era de grande monta. Ficamos sabendo por fonte não autorizada que existia um Grupo de Bandeirantes numa cidade afastada, atrás do Pico Baraúna. Isto chamou a atenção dos seniores e eu também fiquei interessado. Nunca tínhamos visto uma bandeirante. Só de histórias e de algumas leituras aqui e ali.

O segundo era velho conhecido. Nos últimos dois últimos anos, sempre participávamos no aniversário de um grupo Escoteiro amigo de uma cidade localizada no Vale da Redenção, e nos anos anteriores tínhamos ido em viagem de trem. Agora não, chegaríamos de bicicleta. Só a Tropa Escoteira e os Lobinhos iriam de trem.

Seria uma pequena volta, mas valeria à pena. Eram terras desconhecidas e nada melhor do que explorá-las antes que outros escoteiros lá estivessem. Conversamos com diversos amigos e desconhecidos que pudessem nos dar informações, pois ir pela estrada principal estava fora de cogitação. Aumentaria o percurso em 200 km.

No dia marcado partimos pelas 5 da matina. Borboleta foi conosco. Eu era um convidado da tropa Sênior. A primeira cidade ficava a uns 80 k, (descobrimos uma estrada carroçável) atrás do pico famoso em nossa cidade. Um caminho além-mundos. Típicos de nossas escolhas. Não foi fácil. Só subida. Nestas, empurrávamos as bicicletas a pé. Éramos um total de 15 sendo 12 seniores e três chefes.

Borboleta era o mais animado. Enquanto estávamos sem ar na subida, ele cantava a Arvore da Montanha a pleno pulmões. Um grande praça, alegre, prestativo e o nosso salvador quando alguma bicicleta dava defeito. Se necessário, cortava um pedaço de arame farpado e dele fazia a peça necessária para o reparo.

Chegamos por volta das 09 da noite. Foi uma viagem e tanto. A maior parte empurrando bicicletas morro acima. Alguém da tropa apelidou de Serra do Escorrega Sapo. Porque não sei. Claro, muitas escorregadas. Lembro que no caminho encontramos um jipe descendo a serra, com quatro capuchinhos, um deles fez um sinal e achei que nos “benzia”. Deve ter nos achado malucos.

Procuramos um pequeno campo de futebol e armamos as barracas. Ninguém por perto. Dormimos. Acreditamos ser um local pacífico e não montamos guarda.

Levantamos cedo. Lá pelas 06 e meia. Surpresa. Uma enorme multidão fazia círculo em volta das barracas. O prefeito chegou pouco depois. Deu-nos as boas vindas. Não sabíamos como agir. Convidaram-nos para um almoço no Lions Club da cidade. E sabe quem praticamente nos chefiou? O meu amigo Borboleta. Ficou amigo do Prefeito, do Delegado, do Juiz e não sei de mais quem.

Na hora do almoço, apareceram as Bandeirantes, olhe meus amigos, eram mais de 150 moças. Não vi Nenhum chefe masculino. Em compensação muitas senhoras mostrando ser as coordenadoras e ficamos embasbacados. Pudera, a visão era estonteante e acho que nunca mais esqueci aquela abantesma inexplicável aos olhos de um jovem escotista.

Meus amigos, na época eu estava na flor da idade, apenas 18 anos. Muitas delas de cair o queixo, lindas! Soberbamente bem uniformizadas, de blusa branca, saia azul e um lencinho dobrado no pescoço. Os seniores perderam a voz! Nada diziam a não ser admirar o que nunca tinham visto e tão cedo iriam ver de novo. Para uma pequena cidade que não tinha mais do que 15.000 habitantes, eram uma surpresa e tanto!

 Estavam formadas em fila de três, me parece por “batalhões”, como se fossem desfilar. Maravilha. Bandeirantes militares. Fizeram algumas evoluções ao som de uma fanfarra também feminina, muito boa por sinal e depois de algum tempo partiram em direção ao centro da cidade, marchando garbosas, sem dizerem adeus. Nenhuma delas. Não houve apresentação e assim como chegaram partiram.

Após o almoço perguntamos onde era a sede delas. Disseram-nos que era proibido a entrada. Mas insistimos e lá fomos. Não encontramos ninguém. Mesmo sendo uma cidade pequena, não vimos nenhuma de uniforme. Sumiram! Não entendemos nada. Era ou não um núcleo de Bandeirantes? Ou eram uma imitação fazendo a vez de jovens militares? Nunca tivemos a resposta.

Nada mais havia a fazer ali. Nosso programa era de partimos a tarde e assim foi feito. Anoiteceu e uma bela lua cheia iluminava a estrada de terra. Uma bela e grande descida. Mais de 45 quilômetros naquela descida infernal pela noite adentro. Foi aí que aconteceu a tragédia. Numa curva, em grande velocidade, levei um grande tombo, rolando pelo chão e terminando em uma cerca de arame farpado.

Dito e feito. Senti que havia fraturado a perna. Osso pontudo aparecendo abaixo do joelho. Uma dor incrível. Todos em volta assustados. Eu chorando baixinho, mas querendo mostrar uma força que não tinha. Era impossível suportar, principalmente vendo o osso e o sangue que saía aos borbotões. Dizem que os heróis e corajosos não choram. Não sou corajoso e nem tenho sina de herói.

Nesta hora conheci o verdadeiro Chefe Borboleta. Mandou-me esticar a perna e sem avisar mexeu com o osso e ele voltou para o lugar. Uma dor terrível e gritei alto. Tirou seu lenço e pediu outros cinco. Amarrou forte em cima da fratura. Saiu e voltou com 4 pedaços de madeira de mais ou menos duas polegadas por uns 25 centímentos. Amarrou em cima da pseudo atadura. A dor continuava. Colocou-me nas costas e partiu a pé. Outro levaram minha bicicleta e a dele.

Chegamos numa fazenda e o proprietário foi muito gentil. Tinha uma pequena charrete e após colocar um cavalo nela, nos levou até a próxima cidade. Foram mais 15 km só descendo. Minha bicicleta ia amarrada a charrete. Chegamos lá com o dia amanhecendo. Apesar da dor, uma vista de tirar o chapéu – O rio brilhando com o nascer do sol cintilante e ofuscando a vista.

Graças a Deus lá tinha um médico que sorriu e cumprimentou a todos com a mão esquerda. Disse ter sido escoteiro quando jovem. Ótimo. É sempre assim. Dou sorte em encontrar ex-escoteiros. Disse-nos que sendo uma fratura exposta ele ia alinhar o osso no lugar e engessar. Explicou que se não fosse pelo pela atadura do chefe eu poderia até perder a perna. Agora, dizia, era necessário ficar uns meses com o gesso sem movimentar a perna.

Concordei discordando em silêncio. Não ia perder a atividade em Redenção. Sabia que ali passava o trem rápido das 12 horas e nada mais confortável que ir para a segunda atividade assim. Nada falamos para o médico. Os demais sabiam que seria impossível em voltar para casa.

O Chefe Sênior despachou minha bicicleta para minha cidade de origem. Telegrafou para um amigo na estação e guardá-la até eu chegar. Chegamos na cidade de destino ainda à tarde. Na estação encontrei vários escoteiros e chefes que esperavam outros grupos escoteiros que já estavam naquele trem inclusive o nosso.

Fui levado até o local do campo de carro e lá fiquei por toda a atividade. Arrumaram para mim uma muleta e foi uma festa. À noite a tropa sênior chegou com o chefe Borboleta. Eles vieram no final da jornada pedalando. Entre uma e outra cidade, era perto, apenas 100 km.

O programa foi excepcional. Não participei diretamente. “Moletando” aqui e ali, conversa com um, visitava outro e assim de barraca em barraca, de campo em campo, revia e fazia novas amizades. No encerramento, durante a Cadeia da Fraternidade, mesmo com sacrifício, participei e chorei.. Para mim isto era comum. Já não sentia mais dor na perna.

Deixei lá muitos amigos. Voltei outros anos, até que mudei de cidade. As notícias precárias e distantes mais se afastavam do meu cotidiano.

Soube por fontes não oficiosas que o chefe Borboleta ficou no grupo por mais alguns anos. Soube depois que resolveu ir tentar a sorte em Serra Pelada, época do inicio da garimpagem de ouro e que estava atraindo muitos brasileiros sonhadores. Nunca mais ouvimos falar dele. Quem sabe ficou rico.

Fiquei batizado de chefe Muleta Torta pelos seniores. Tudo bem. Foi uma experiência. Valeu. Ainda mais por ter por perto um chefe durão como o meu amigo Borboleta. Quanto não daria para voltar no tempo. Sei que isto é impossível, mas foram anos de uma extrema felicidade. As lembranças são como punhados de ouro em pó que soltos ao vento brilham ao sabor do sol.

E quem quiser que conte outra...


Não confunda jamais conhecimento com sabedoria. Um o ajuda a ganhar a vida; o outro a construir uma vida.

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Era uma vez... Em uma montanha bem perto do céu...

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