QUANDO A UNIÃO FAZ A FORÇA
Se procuro em minhas recordações as que me deixaram um sabor duradouro, se faço balanço das horas que valeram, sempre me encontro com aquelas que não valeram à pena.
Nada neste mundo acontece por acaso. Tudo tem sua razão de ser. O sonho de uma máquina do tempo para voltar ao passado e tentar mudar o que aconteceu seria dentro da prisma religiosa impraticável. Razões? Varias. Uma delas é que eu não seria o que sou hoje. Não teria participado de tantas e tantas atividades escoteiras que só me trouxeram uma enorme fortuna de amigos e de lembranças.
Cidades, estados, vilas, por onde viajei e morei fiz amigos, conheci jovens e adultos do movimento escoteiro. Sempre recebi mais do que merecia e sem sombra de dúvidas me mostrou que nosso escotismo é uma fraternidade universal. Tive a felicidade de viajar para outros países e lá muito aprendi. E as lembranças depois que o tempo passou, continuam viva na minha memória do qual irão permanecer nesta e na outra vida.
Às vezes lembro-me de um fato ou outro. Quando reminiscência do passado eclodem de maneira real, lá estou eu grafando, seja na minha pequena caderneta ou similar, registrando antes que o lance apague e esvaneça como poeira solta ao vento.
Não foi um grande episódio mas que mereceu um registro, pois acredito que não é uma situação incomum e pode acontecer se não aconteceu na vida de qualquer escotista.
Pelo final da década de 60, participava como chefe de uma tropa escoteira desconhecida pois nosso território se compunha de três grupos escoteiros em cidades próximas. Não conhecia ninguém da alta cúpula regional, salvo alguns dos meus diretores de cursos que observei eram de outros estados e pelo que via até então não estavam mais participando de atividades escoteiras.
Um grande empreendimento visando jovens, (Campo de Férias) que estava sendo montado próximo a uma pequena cidade no interior do estado, tinha raízes indígenas e escoteiras. Seu principal executivo teve a feliz idéia de lá realizar uma grande atividade a nível nacional.
Convenceu a Direção Regional a promover um Acampamento Nacional de Patrulhas, no terreno onde seria montado o Campo de Férias. O empreendimento arcaria com várias responsabilidades, no intuito de facilitar a participação dos escoteiros do mais longínquo rincão brasileiro.
Uma viagem aos Estados Unidos mostrou a ele como funcionavam os acampamentos de férias. (hoje uma realidade e alguns deles oferecendo mais do que o escotismo oferece) Sabíamos como ele também que o empreendimento visava o lucro, diferente do nosso escotismo. Assim, sua idéia não deixava de ter alguma razão pois seria conhecida nacionalmente. Pelo que eu saiba era o primeiro no território brasileiro.
Conseguindo trazer pelo menos alguns milhares de escoteiros o marketing seria certo. Conseguiu e vendeu seu peixe a quem de direito. Prometeu mundos e fundos. Alimentação para todas as patrulhas, infra-estrutura local, transporte da capital até o local e vice versa (mais ou menos 280 km) e até iria trazer uma tribo indígena para montar ocas e ensinar aos participantes a técnica do arco e flecha.
Bem, todos acreditaram e o primeiro passo foi dado. Foi contratado um profissional (mais tarde um grande amigo meu) para montar a estrutura do evento. Circulares as Regiões, Grupos, inscrições, taxas, muitos detalhes tudo aquilo que se requer numa situação desta. Tudo feito com antecedência de uma ano.
Fiquei sabendo que mais de 800 jovens e adultos de todo o Brasil inscreveram-se. Os mil e tantos que se esperava não foram conseguidos mas mesmo assim já era um grande passo. Com a cobertura nacional através do radio e de jornais, inclusive duas grandes revistas de consideráveis repercussão o sucesso do acampamento seria um fato inédito naquele estado.
Animado em conhecer com era um acampamento nacional e ver escoteiros de diversos estados brasileiros me inscrevi juntamente com mais 14 escoteiros do grupo escoteiro que participava. Não foi possível a inscrição de todos. Tentamos de toda maneira conseguir através de eventos próprios, condições financeiras para abancar as despesas, mas não deu certo.
Chegou o grande dia e lá chegamos com duas patrulhas e dois escotistas. O encontro seria na Praça da Estação as 09 hs no centro da capital. As instruções era que o transporte sairia as 09:30 hs. Fomos os primeiros a chegar. Nosso trem não atrasou. Logo a praça estava cheia de escoteiros e escotistas. Só ali mais de 300 participantes. Os demais Iriam de ônibus fretados direto ao local e outros foram de condução própria.
10 hs nada dos ônibus. 11 hs nada. Começamos a nos preocupar. Convidei um amigo escotista e nos dirigimos ao Escritório onde estava a organização e lá encontramos o profissional (jovem ainda) nervoso, pronto a explodir e engasgando nos disse que o responsável não providenciou nada. Onde estava ele perguntei. Sumiu! Disse ele. Não sei o que fazer! Enfim, não tinha ônibus. E as demais provisões estão lá no campo? - Não sei, respondeu.
Pensando e matutando me preocupei. E agora? Onde estavam os dirigentes regionais? O responsável disse que dois deles tinham passado ali e estavam atrás do proprietário do evento. Na praça um numero enorme de escoteiros esperando, alegres, esperançosos e avisar que não haveria mais acampamento nacional seria uma calamidade. E os que foram para o local? Era uma situação peculiar.
Apareceram ali outros escotistas. Conversas, idéias até que achamos uma solução e para isto precisávamos de escotistas residentes na capital. Conseguimos 15. Fizemos uma reunião de emergência e fomos francos com a situação. Alguns não quiseram se comprometer. Ficamos em 10.
Montamos um plano de operação. Onde conseguir ônibus agora? – Anotamos endereços e partimos. Eu e um jovem sênior de 17 anos, fomos de ônibus urbano até o Batalhão da Policia militar mais próximo. Procuramos o comandante. Pessoa gentilíssima. Explicamos a situação. Cederam-nos 2 ônibus. Ida e volta. Chegariam à praça em 3 hs. O que dois escoteiros bem uniformizados podem fazer não?
Voltei para o escritório. Somente um dos escotistas tinha chegado. Conseguiram dois ônibus para as quatro da tarde. Foi chegando um a um. Finalmente vimos que houve um bom retorno. 6 ônibus foram conseguidos. Resolvido. Dava para todos. Fomos para a praça avisar o resultado da operação. Com o passar da hora, cada um fazia seu lanche aqui e ali. Escoteiros não se apertam.
16 horas. Foram embarcados os últimos.. Minha tropa estava no derradeiro. Muita alegria. Canções, e dormi.
Acordei no local. Uma grande movimentação. Um distrital da área tentava organizar e pedia colaboração dos escotistas que iam chegando. Soube que o executivo proprietário do empreendimento continuava sumido. A intendência estava incompleta. Faltava parte dos víveres. Avistei os tais índios (uns 20) montando suas ocas sem saber o que acontecia.
Procurei o Distrital. Como posso ajudar? Pediu-me para ir com ele até a cidade. Iria falar com o prefeito. Conseguimos uma caminhonete e partimos para a cidade mais próxima. Procuramos a prefeitura. Grande prefeito!, Disse que resolveria sobre a intendência e resolveu.
Tivemos depois o problema da madeira. O prometido era 20 bambus por patrulha. Não havia nada no campo. De novo com o distrital e a turma que tinha colaborado na capital (Era composta de jovens de 18 a 21 anos escotistas de primeira qualidade e que alguns anos depois se tornaram meus assistentes quando assumi o comissariado regional). Fomos a pé até duas fazendas próximas. Pediram ajuda a colonos ali residente para cortar bambus e em pouco tempo uma grande quantidade estavam no campo.
A abertura programa para as 18 hs só foi realizada às 21 horas. Ficamos juntamente com os jovens da minha tropa emocionados. Foi um espetáculo maravilhoso. Nunca tinha visto tantas bandeiras e uma ferradura tão grande. As 21:30 hs foi chamado à intendência. Não houve atividades naquele dia.
Todos foram dormir altas horas da noite. Era o primeiro dia e a montagem dos campos de patrulha era primordial. O acampamento parecia ter engrenado. Como os chefes de Campo e Sub Campo, intendência, programação entre outros já haviam sido escolhidos antes e claro, cada patrulha sabia o que fazer, foi como se o programa não tivesse tido tantos percalços.
Tenho certeza que não fossem os escotistas que se materializaram no escritório no dia anterior e depois a resolver cada dificuldade em cada tempo todo o programa teria sido um fracasso geral. Empenharam-se, deram tudo de si e poucos muito poucos ficaram sabendo da real situação.
Tínhamos um sub campo de escotistas. Fiquei ali olhando e vendo se tudo corria a contendo. Ninguém da direção me conhecia. Fui conhecendo a cada um. Pena, tinha alguns que só faltavam colocar nele um crachá com um nome – Baden Powell II. Não sei por que isto acontece. Tanta gente simpática, amiga e esses presunçosos achando que são o máximo mas todos sabiam que era só fachada.
O acampamento transcorreu na mais perfeita paz. Um grande sucesso. Sou mesmo um chorão. E como chorei neste acampamento. Chorava sempre que via a grandeza do nosso movimento. Aprendi a fazer uma oca perfeita mas não fui muito bom no arco e flecha. Descobri um rio próximo e passava algumas horas lá pescando. O que comi de lambari frito não dá para explicar. Desculpe, não me considerava um baldio. Não me convidaram para nada. Ficava sem o que fazer no sub campo dos escotistas.
No final, no dia do encerramento, apareceu o executivo idealizador. Com aquela cara de quem comeu de graça e gostou. Sorria para todo mundo como se nada tivesse acontecido. Parecia um desses políticos sorrindo, dando abraços e abraçando criancinhas. Depois a região entregou a ele uma medalha ouro de gratidão (?). Muitos outros receberam certificados e agradecimentos.
Aqueles que materializaram o acampamento, colocando lá a maioria dos participantes nem uma palavra. Claro, o importante não foi o que fizemos e sim a nossa obrigação de servir. Aprendi com meu chefe que quando ajudamos não esperamos recompensa. Nem sermos lembrados. Dizem que os escoteiros pecam pela modéstia.
Mais tarde, o executivo do empreendimento apareceu de novo na minha vida, mas desta vez havia aprendido muito com tais tipos. Fica para outra narrativa a continuação de uma novela com final feliz.
Mas esta é outra historíola, eram outros tempos. Hoje acredito que tudo é feito e realizado na mais perfeita organização. Soube que temos em várias regiões atilados escotistas que montam atividades com mil ou 10 mil escoteiros com grande facilidade.
E o retorno, ah! O retorno. Pneu furado, radiador fumarento, motorista temulento, bem são coisas da vida. Por acaso isto também não aconteceu a você?
E quem quiser que conte outra...
Autor: Gustave Flaubert
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