O CHAPÉU DE TRES BICOS
Tem três bicos o meu chapéu!
O meu chapéu tem três bicos,
Tem três bicos o meu chapéu. ♪♪
“Velha canção escoteira do nosso chapéu de abas largas”
Tinha história aquele Chapéu com Três Bicos. Pertenceu a três amos diferentes. Sempre os serviu lealmente e por cada um deu tudo o que podia para ser um autêntico Chapéu Escoteiro com Três Bicos. Poderia até dizer que em sua biografia adquiriu vida, teve momentos alegres e momentos tristes. Amparou impacto, tempo ruim e em todas as ocasiões se orgulhou de si próprio do serviço ao próximo.
Hoje, está ali, pendurado na parede, já velho, desbotado, ainda com um dono que não o usa mais. Quem sabe, mesmo velho e apagado poderia voltar à ativa novamente. Afinal ele ainda se considera um autentico Chapéu escoteiro com Três Bicos. Sabe que foi substituído e não reclama por ter sido abandonado depois de tantos e tantos anos. Seu atual dono dizia que sua aposentadoria tinha chegado.
Poderia dizer que foi ele quem me contou sua história. Sei que não acreditam e vão rir de mim. Afinal Chapéu com três bicos é Chapéu com três bicos. Não fala não pensa é um objeto inerte e eu não teria como ouvi-lo. Falar então... Mas a verdade é que sua história tão cheia de aventuras e grandes atividades aventureiras não poderiam ser esquecidas.
Acreditem se quiserem. Foi num domingo chuvoso, estava eu olhando o dilúvio pela janela, que caia aos borbotões na calçada da casa de um Velho Chefe que visitava e ouvi o seu chamado. A princípio não vi ninguém, achei até ser brincadeira do meu amigo. Depois com sua insistência, olhei e ele balançou suas abas em minha direção. Estava pendurado em uma parede da sala, limpo, abas retas e orgulhoso do que era.
Por favor, não riam! Juro que é verdade. Pelas barbas de Satã! (não sei se ele tem barba). Ele queria desabafar. Ninguém o ouvia e achou que eu poderia ser seu amigo e ter boa audição no que tinha a contar. Não era uma história das mil e uma noites, claro que não. Afinal ele era um Chapéu Escoteiro com Três Bicos e eu o poderia chamar de Chapéu de Três Bicos.
Tudo começou com seu primeiro dono. Vadinho. Um escoteiro que morava lá pelas plagas do norte do estado. Entrou na tropa com onze anos. Para fazer seu uniforme engraxava sapatos durante a tarde todos os dias de semana. Pela manhã estava na escola. Conseguiu juntar o dinheiro necessário. Isto levou quase cinco meses. Tempo que esperou para fazer a promessa, pois sem o uniforme não poderia ter feito.
Não tinha o Chapéu Com Três Bicos. Aguardou uma oportunidade para comprá-lo. Era difícil. Só estava a venda na capital de dois estados do país. Como buscá-lo, fazer o pagamento, transporte seria uma epopéia digna de um “super escoteiro”. Sabia que um dia iria ter um. Era calmo e ponderado. Esperou o momento oportuno.
Quase todos os irmãos escoteiros da tropa possuíam um. Ele e mais dois usavam um bibico, o que não lhe agradava muito. Sua mãe e seu pai tinham um grande respeito por ele. Era estudioso, bom filho, um excelente escoteiro; A Lei Escoteira era ponto de honra para sua ação diária.
Uma irmã de seu pai morava na capital de um daqueles estados. O pai escreveu para ela. Sabia que a carta iria demorar e que somente através de um portador poderia receber o Chapéu com Três Bicos. Recebeu uma resposta dois meses depois. O endereço não batia. Pedia outro. Mandaram outra carta com um número de telefone do Comissário Regional daquele estado.
Voltando ao Chapéu com Três Bicos, ele contou que nasceu em um dia qualquer de março, lá pela década de 50. Seu pai, o Sr. Prada foi quem o fez com muito carinho. Naquela época eram destinados somente aos membros do escotismo. Sonhava no dia que teria um dono. Gostaria que fosse um ótimo escoteiro que o mantivesse sempre limpo e com as abas retas.
Lembrou quando foi vendido a uma Loja escoteira. O colocaram no fundo do bazar, embrulhado e esquecido. Outro Chapéu com Três Bicos ficara em exposição. Assim ficou por lá mais de seis meses. O atendente da cantina um belo dia, comentou sua venda. Ele explodiu em alegria. Afinal teria um dono e poderia ajudá-lo em tudo que o Chapéu de Três Bicos pode fazer. Rezava para ser um escoteiro com o espírito voltado para o bem.
Vadinho voltava de um acampamento de tropa. Cansado, (voltavam a pé), ajudou sua patrulha a guardar a tralha que estava estocado na carrocinha. Quando conseguiram comprá-la todos foram tomados por uma satisfação imensa, pois agora levar e trazer o material de acampamento ficaria bem mais fácil.
Da sede até sua casa ainda tinha uma boa jornada. Ele estava acostumado. Sempre fazia este caminho e os passantes e moradores já o conheciam de longa data. Ao avistar sua residência, viu no portão da cerca de madeira, suas irmãs, seu pai e sua mãe, e ficou intrigado.
Quando entrou em casa, viu em cima da sua cama, o seu novo Chapéu de Três Bicos. Incrível! Extraordinário! Ria, cantava e abraçava a toda a sua família. O Chapéu de Três Bicos também sorria. Gostou de Vadinho. Achou que seria muito útil e dalí em diante, também iria pertencer àquela família tão simpática.
No dia seguinte Vadinho procurou um marceneiro, para saber quanto seria para fazer um porta chapéu. Tinha visto o Chefe com um, e viu que seria ótimo para guardá-lo mantendo sempre as abas retas durante anos e anos. Combinaram o preço e Vadinho trabalhou mais e mais engraxando sapatos para pagar sua encomenda.
No primeiro sábado, orgulhosamente exibiu seu chapéu com três bicos a todos os seus irmãos escoteiros. Agora sentia que estava bem uniformizado. O Chapéu com Três Bicos também se orgulhava de seu dono. Fazia tudo para protegê-lo do sol e da chuva, mas quando chovia Vadinho corria para um local protegido para abrigar é claro o seu chapéu com três bicos.
Um dia, em uma atividade feita em uma serra próxima a sua cidade, passaram por uma estreita trilha tendo ao lado um despenhadeiro de grande profundidade. Um pé de vento o pegou de frente e seu Chapéu com Três Bicos vou para longe. Deu para o ver caindo bem lá no fundo.
O Chapéu Com Três Bicos se assustou com aquilo. Nunca pensou que pudesse acontecer. Não gostaria de acabar no fundo de um penhasco, molhado talvez a rolar e correr por regatos e córregos, esquecido e se desmanchando lentamente. Não. Não podia acontecer. Tinha certeza que Vadinho iria salvá-lo.
Vadinho de maneira nenhuma iria desistir do seu Chapéu com Três Bicos. Mesmo contrário as sugestões da chefia, estudou como ir até ao fundo do penhasco e resgatar seu Chapéu com Três Bicos. Voltou por dois quilômetros e encontrou uma pequena trilha que descia até o fundo. Subiu córrego acima e alcançou o ponto onde estaria o seu Chapéu com Três Bicos.
O Chapéu de Três Bicos viu Vadinho se aproximando. Permanecia em cima de uma árvore e sabia que Vadinho não poderia vê-lo. Não podia deixá-lo ir embora. Balançou, balançou, esperneou, se mexeu tanto que caiu próximo onde Vadinho estava. Os dois, o Chapéu de Três Bicos e Vadinho deram urras de alegria. “Anrê, Anrê, Anrê! Pró Brasil? Maracatu”. Pronto, o agradecimento tinha sido realizado.
O Chapéu de Três Bicos ficou com Vadinho por mais de 8 anos. Um dia ele foi para outra cidade e presenteou seu Chapéu com Três Bicos a um novo escoteiro. Não gostou do seu novo dono. Zito era desleixado, não tinha interesse pelo Chapéu com Três Bicos, e fazia dele gato e sapato. Mesmo sem uniforme, usava-o e o surrava com todas as intempéries possíveis.
Quebrou sua proteção das abas largas e o jogava de qualquer jeito em cima do guarda roupa. Soube depois de um ano que Zito já não participava mais do escotismo. Durante três anos ficou com Zito. Esquecido em um canto, desprezado, sem nenhuma utilidade para um nobre escoteiro. Foi substituído por um boné qualquer. O Chapéu com Três Bicos estava triste e magoado.
Um dia um tio de Zito viu o Chapéu com Três Bicos em cima do guarda roupa. Perguntou a Zito se não o presenteava. Sabia que um chefe de tropa escoteira seu amigo precisava de um. Como era pobre e sem condições financeiras não tinha adquirido na capital. Zito é claro viu uma oportunidade de ganhar uns trocados. O tio pagou o que ele pediu.
O Chapéu de Três Bicos vibrou com a mudança de dono. Ainda não sabia quem era o terceiro que ia servir. Não importava. Estava cansado do abandono, da sujeira, se sentia torto e com cheiro ruim.
Miguel era o seu novo dono. Era um bom chefe. Não entrou no movimento como menino. Já tinha 18 anos quando iniciou sua senda na chefia escoteira. Não entendia nada. O Grupo tinha enorme falta de chefes. Miguel tinha coragem. Aprendeu sozinho ou mesmo com seus monitores as técnicas e a maneira como fazer para a tropa prosseguir em sua caminhada.
Todos os jovens o admiravam. Fora duas vezes a capital fazer cursos escoteiros. Aprendeu muito. Estava fazendo dois anos de atividade. Quando soube do Chapéu com Três Bicos e se alegrou. Ao vê-lo, entristeceu. Velho, torto, sem cor e alquebrado.
O Chapéu com Três Bicos sentiu-se desprezado. Pensou positivo e deu negativo. Mas logo viu que Miguel não tinha desistido dele. Soube por meio de outros chefes antigos como reformar um chapéu. Pegou uma escova nova de engraxar sapatos, molhando aos poucos com água potável, escovou todo o Chapéu com Três Bicos várias vezes.
Após ver que a limpeza deu resultado, faltava endurecer a aba para se tornar um verdadeiro Chapéu escoteiro com Três Bicos com abas retas e planas. Aprendeu com sua mãe como engomar roupas e viu que ali poderia fazer o mesmo. Jogou pouca goma, também molhada na escova e com o ferro de passar roupa, colocou o chapéu com três bicos em uma superfície lisa, passando a borda do ferro calmamente, sem forçar para não agredir a cor e não borrar.
Em pouco tempo o chapéu estava como novo. Faltava somente a proteção. Miguel mesmo a fez. Agora sim, o chapéu com três bicos estava em perfeitas condições de ser usado.
O Chapéu com Três Bicos serviu Miguel por mais de 15 anos. Já velho, perdeu muito a cor, no entanto ainda permanecia fiel as origens. Miguel não comprara um novo. Lembrava sempre dos anos que conviveu com Miguel. Das excursões, dos acampamentos, de suas viagens para participar em eventos burocráticos ou de decisões do escotismo nacional.
Um dia, Miguel apareceu com um Chapéu com Três Bicos novo. Falou para o amigo Chapéu com Três Bicos que não estava abandonando-o. Estava na hora de sua aposentadoria. Afinal estava fazendo seus trinta e cinco anos de nascimento. Precisava descansar. Miguel o colocou em sua sala. Agora casado, com filhos, seu Chapéu com Três Bicos era um troféu a ser mostrado a todos. Tinha orgulho dele.
Achei até que Miguel sabia de toda a história. Quem sabe o Chapéu com Três Bicos também tinha contado a ele. Eu era muito amigo de Miguel. Ele estava agora com 68 anos. Ainda era ativo nas atividades escoteiras.
Olhei para o Chapéu com Três Bicos e o parabenizei. Disse que também tinha um em casa. Não com tantas histórias para contar. Agora que conhecia sua fábula, eu também teria mais cuidado com meu Chapéu com Três bicos. Quem sabe depois disto, ele seria mais falante, e me diria o certo e o errado em seu uso.
Miguel adentrou a sala e me viu falando com o Chapéu com Três Bicos. Fiquei encabulado e sorri meio sem jeito. Miguel não disse nada. Também sorriu. Ficamos eu e ele calados como a dizer que o segredo seria bem guardado.
Fui para casa pensativo. Quantos Chapéus com Três Bicos neste “mundão” escoteiro não tem grandes histórias para contar? Quantos são felizes com seus amos e quantos estão tristes com o tratamento que recebem. Hã! Que saudade. Que saudade do meu Chapéu com Três Bicos...
♪♪O meu chapéu tem três bicos...
E quem quiser que conte outra...
"Há corações que param no passado; e para que isto não
aconteça com você deixo-lhe este pequeno lembrete, para que o
seu coração, ao mover-se no futuro, encontre sempre algo no
presente.”
Anônimo
aconteça com você deixo-lhe este pequeno lembrete, para que o
seu coração, ao mover-se no futuro, encontre sempre algo no
presente.”
Anônimo
Fantástica história.
ResponderExcluirViajei nela como não fazia desde criança.
Parabéns pela excelente criatividade e pelo tom nostálgico da narração.
Não pude deixar de ler outros contos também.
De agora em diante seu blog estará gravado no “meus favoritos” para que possa prestigiar, ou seria saborear seus “causos”.