Esperança e gloria de um Chefe Escoteiro
Filósofo? Nâo! Um sábio? Não! Ele não era musico, não era poeta, não tinha erudição e não vai tornar-se lenda e nem ficar na historia da humanidade. Vai sim ficar na minha memória para sempre como o maior Chefe Escoteiro que conheci!
“Não há caminhos para a paz, a paz é o caminho!”
O “mais atroz das coisas ruins com pessoas más,
é o silêncio das pessoas boas”
“Não deixe o sol morrer sem ter morto o seu rancor!”
Mohandas Karamchand Gandhi
Lembranças, eternas lembranças. Não são como nuvens que se vão e não voltam mais. Elas ficam para sempre gravadas em nosso ser. Na profundidade da alma. Alojam na memória e ali permanecem para sempre. Algumas são boas para reviver o passado outras machucam. Estas também continuam lá. Não dá para esquecer. Tem-se vontade de voltar no tempo e mudar o nosso destino no futuro. Impossível.
Coloquei o livro sobre meus joelhos. Agora olhava o mar, as ondas que se arrebentavam na areia quente e sentia a brisa gostosa a bater suavemente no rosto. O mar é irresistível. Já estive nas mais altas montanhas, nas vastidões das belas planícies do nosso sertão. Vi coisas que poucos tiveram a oportunidade de ver. O primeiro vôo da borboleta azul, o botão da flor de uma orquídea presa no jequitibá a desabrochar. Ouvi o cantar do Sabiá lá na serra distante em uma tarde de verão. Ouvi o som de uma cascata caindo sobre pedras amigas de longos e longos anos de jornada. Mas o mar... Este é maravilhoso. Ainda não vi nada que o tirasse da lista dos mais irresistíveis espetáculos da terra. Agradeço a Deus sempre por proporcionar beleza tão magnífica.
Naquela tarde quente de verão, eu lia Gandhi: O apóstolo da não violência. de Claret, Martin. Um homem que se tornou uma lenda. Albert Einstein o saudou como o “porta-voz da humanidade. Já conhecia superficialmente a historia. Nessa tarde eu estava com uma boa dose de amor e paciência vendo e ouvindo algumas gaivotas que graciosamente se elevavam no ar e faziam lindas acrobacias. Os olhos semicerrados, os pensamentos buscando o passado, aboletado em uma cadeira de praia em frente ao lindo e majestoso mar..
Eu gostava de ir ali e ler. As peripécias de um conto me levavam para longe, em locais nunca antes imaginados. O livro é assim. Transporta-nos como viajantes eternos, na busca de novos conhecimentos de novos lugares de pessoas gentis, outras nem tanto. Basta escolher o livro certo para o dia certo. Ele nos dá o conhecimento dos países distantes e nos faz descobrir lindas e maravilhosas situações que nunca em nossa vida iremos viver.
Uma nuvem em forma de uma frondosa arvore pairava sobre minha cabeça. Como em um brilho intenso minha memória rebuscou no passado a figura de Martinho. Chefe Martinho Alberto Flores. Foi um dos maiores Chefes Escoteiros que tive a honra de conhecer. Fomos amigos por longos e longos anos. Quantas e quantas noites de acampamentos, de viagens pelo país, de excursões, de reuniões lindas e formidáveis. Acredite o amor fraternal e o respeito que sentia por ele não tinha comparações. Martinho era Chefe de Grupo Escoteiro. Hoje um Diretor Técnico. Mas não aquele chefe que todos já viram. Não. Martinho era especial. Viver em seu grupo com ele era viver no paraíso. Ali brotava o amor, o respeito, não havia desigualdade só fraternidade.
Notava que todos os escotistas do grupo tinham por ele a maior consideração e olhe, não era uma figura imponente. Até feio para o meu gosto. Pernas finas compridas a se aventar próximo a sua calça curta do qual não abdicava. Martinho era assim. Morava a cinco quadras da sede, mas ia a pé, orgulhoso e com aquele garbo próprio dos grandes escoteiros. No bairro ele já era admirado e quando passava lhe saudavam com carinho. Ele sempre dizia que a maior propaganda do escotismo era um escoteiro bem uniformizado e garboso a andar na sua comunidade.
Sempre chegava a sede uma hora antes do inicio. Procurava os chefes de sessão, perguntava se estava tudo bem, se precisavam de alguma coisa e era um exemplo para todos. Na sede nada a fazer, ele já estava com um espanador ou uma vassoura, limpando varrendo mesmo sabendo que a patrulha de serviço tinha feito isso na noite anterior. Ninguém ficava sem um sorriso de Martinho. Sempre com uma palavra encorajadora como a dizer – Conte comigo, estou aqui para ajudá-lo e servi-lo, acredite sou seu amigo e irmão escoteiro.
Mas olhe, não pense que todos faziam o que desejavam. Martinho era firme quando um acontecimento ou um fato destoava do que ele dizia, ou seguia o caminho diferente do que preconizava a formação escoteira. Sua maneira de mostrar os erros era educada, simples e direta. Sempre a sós com o interessado. Nunca se exaltava e nunca levantava a voz. Dizia ele que gritos nada mais são que agressões gratuitas. Não convencem ninguém. Não levavam a lugar algum. Claro, houve alguns escotistas que não concordavam com tudo. Isso acontece nas melhores famílias e nas melhores organizações da sociedade. Até Leonildo, um chefe antigo aceitou sua maneira de levar com sapiência e coragem sua responsabilidade como Diretor Técnico.
Quando em Conselhos de Chefes que mensalmente eram realizados, lá estava Martinho bancando o Salomão. Sabia o que dizer nas horas mais difíceis na tomada de decisões que nem sempre agradava a todos envolvidos. Fez questão de presentear a cada escotista, claro com os fundos financeiros que o grupo adquiriu durante sua gestão, com o POR o Regimento Interno e os Estatutos da direção nacional. Dizia que era impossível alguém conhecer seus direitos se não conhecesse seus deveres.
Durante muitos e muitos anos, Martinho foi reconduzido como Diretor Técnico apesar de sempre achar que não poderia ser eterno. Ninguém é insubstituível comentava. Mas a cada eleição, os escotistas do grupo formavam uma comissão e o nome dele sempre era o mais votado. Isso não lhe agradava. Achava que o bastão tem de ser passado adiante. Temos que ter gente nova, novas idéias, formar outro tipo de liderança. Isso faz parte da democracia e ela é saudável, dizia.
Lembro que durante uma atividade escoteira regional, Martinho foi convidado a colaborar com um Sub.campo. escoteiro. O chefe do Sub.campo. era arrogante e prepotente. Abusava do apito, abusava de sua autoridade, mas no final da atividade todos sentiram uma enorme mudança nele. Achamos que foi devido à convivência de três dias com Martinho. Ele era assim transformava as pessoas que conviviam com ele.
Quando a convite ou sem eu o visitava, era uma alegria extraordinária, em ver a movimentação das sessões, a alegria dos jovens, e o amor ali existente. Martinho só não abria mão da uniformização. - Não existe desculpas – dizia – Demore-se o tempo necessário. Temos que ter garbo e boa ordem. O Grupo Escoteiro tinha sempre a mão um uniforme, um pedacinho do pano para fornecer aos pais quando da admissão para uma futura confecção. Ele não aceitava ninguém de uniforme enquanto não se fizesse a promessa. Mas todos acatavam com bom grado, Martinho com sua maneira simpática sempre pedia nunca ordenava.
Uma vez ele teve um pequeno problema com os dirigentes regionais. Pequeno mesmo, mas ele foi firme e não deixou para amanhã o que tinha de fazer. Quando viu que correspondências não estavam resolvendo, pegou um ônibus e foi até a capital do estado. Não encontrou lá nenhum dirigente na sede regional, mas esperou pacientemente ate a noite quando chegou um deles. Foi claro e direto. Não discutiu. Mostrou o que estava errado. O dirigente quis argumentar, ele mostrou nos regulamentos escoteiros como deviam proceder. Ele conhecia bem. Sabia de tudo que constava ali.
Assim era Martinho. Seu nome ficou gravado por aquele dirigente. Não foi esquecido. Um mês depois recebeu um convite para ser Interventor em um grupo escoteiro em uma cidade próxima. Não entendeu. Aceitou e lá foi na primeira reunião com eles. Sentiu uma desunião enorme. Ficou lá no sábado e domingo. Era para ser uma intervenção de 60 dias. À noite quando retornou, estavam na rodoviária todos os descontentes. Uma grande palma escoteira foi dada a ele. A paz voltou ao Grupo. Dois dias bastou. É Martinho era mesmo especial.
Martinho não era um erudito e nem tão pouco filosofo, mas sempre dizia que temos que ter conceitos adequados a cada situação. Para isso a conquista de valores fazem com que a consciência haja de forma correta e fraterna. Sempre dizia que temos que meditar sobre nossos atos. Pensarmos profundamente como estamos agindo com nossas vidas e o que estamos fazendo para dar oportunidades aos demais que nos cercam. Dizia sempre que o importante era ver que em última instância, somos muito mais aquilo que agimos e sentimos do que aquilo que apenas discursamos.
Não entendi bem isso. Mas me lembrei de um filósofo americano que afirmou: “O que você faz fala tão alto que não consigo escutar o que você está dizendo.” O que fazemos será nosso maior discurso sobre nós mesmos. O que efetivamente trazemos na alma muito alem do que qualquer preleção ou apresentação verbal. - É preciso dizia Martinho – que temos de escolher os valores que irão pautar nossas vidas, e temos que fazer um esforço enorme para que esses conceitos, sejam realizados com disciplina e persistência, assim serão transformados em valores reais e a coerência será a tônica do nosso agir.
É. Martinho era único. Dizia e fazia o que pensava. E olhe, sempre tinha vários ouvintes a sua volta. Um dia pensei que se tivéssemos centenas ou milhares de Diretores como ele no escotismo, seriamos visto como um grande movimento. Cecília sua esposa foi à melhor escolha que ele tinha feito na vida, sempre me dizia. Um achado! Deus me fez um privilegiado. Realmente formavam um casal maravilhoso. Ela sempre ia a sede com ele, mas não participava diretamente. Ficava na sala de estar, conversando com pais, ajudando no que sabia fazer. Seu filho Netinho era lobinho e adorava a Alcatéia. Mas ele nunca em tempo algum influiu em seu crescimento escoteiro. Ninguém poderia acusar seu filho de ser o “filho do chefe”.
Uma tarde de abril cheguei à sede e não vi ninguém. A porta estava aberta e adentrei até o almoxarifado. Encontrei Martinho deitado no chão se contorcendo em dores. Aflito chamei uma ambulância e o levamos para o Hospital. Foram duas noites de agonia. Não dormi. Não fui trabalhar. Fiquei ali plantado com Cecília. Ela era mais forte que eu. O médico nos trouxe o diagnóstico – Câncer nos pâncreas. Não tem muito tempo de vida. Olhe, meus olhos encheram de lágrimas. Só não chorei alto porque tinha de respeitar a dor de Cecília.
No terceiro dia, o hospital encheu-se de escoteiros e escotistas. Vieram até dirigentes da Regional. Parecia um aparato de uma grande atividade escoteira. É Martinho era mesmo muito querido. Todos os funcionários e o diretor do hospital ficaram perplexos. Não entendiam tudo aquilo. Nada se comparava a centenas e centenas de escoteiros, pais, amigos que tomavam de assalto os corredores, a entrada e até boa parte da rua do hospital. Alguns policiais vieram assustados, mas quando souberam o que tinha acontecido, eles ajudaram a organizar o transito. Os escoteiros portavam-se dignamente.
Martinho fez questão de receber delegações de cinco a oito membros em seu apartamento. Queria apertar a mão de todos que foram ali visitá-lo. A direção do hospital abriu uma exceção. Martinho ficou todo o tempo com um sorriso nos lábios. Quase não falava. Sentia dores horríveis apesar de remédios fortes que tomava. Recusava-se a dormir. Dizia que as visitas vinham em primeiro lugar e o sono depois. Lá pela uma da manha, Martinho me chamou e perguntou: - Meu amigo, todos dizem sempre suas últimas palavras quando a morte aproxima. Eu não sei o que dizer. Acha que devo dizer alguma coisa?
Falar o que para Martinho? Eu era a prova viva da admiração, do meu amor e do respeito que sentia por ele. Meus olhos inchados não mostravam outra coisa a não ser a dor enorme que estava sentindo. Martinho sabia a hora que iria se despedir para sempre. Pediu sua esposa que fizesse uma doação de todos seus pertences escoteiros ao grupo e lá eles iriam doar a quem precisasse. Não pediu para ser enterrado com ele. Não, sabia que era mais importante que alguém pudesse usá-lo e ser tão feliz como ele foi. Cecília uma incansável mulher, ficou todos os dias ao seu lado. Seu filho ficou com a Avó Matilde que o adorava.
Cecília não chorava. Seu semblante era firme. Seus olhos vermelhos mostravam seu sentimento. Martinho partiu em uma tarde de maio. Outono. Folhas secas caindo das árvores naquela necrópole sombria em um bairro afastado da cidade. Uma brisa leve e calma foram testemunhas da ida de Martinho para onde ele acreditava que existia outra vida. Nunca me falou nela. Nunca quis convencer a ninguém sua religiosidade.
Suas exéquias foram simples. Bem não tão simples. Milhares de escoteiros vindo de diversas cidades, lá estavam para saudar e dar o último adeus a Martinho. Não ouve canções. A despedida foi só uma lagrima que aqui e ali era derramada por todos que foram seus amigos no passado. Martinho seria lembrado pelo que foi pelo que fez e não pela sua agonia de uma morte não esperada.
Ele deixou saudades, muitas saudades. Soube alguns meses depois que o Conselho de Chefes do grupo havia votado a mudança do nome. Seria Grupo Escoteiro Chefe Martinho Alberto Flores. Cecília quando soube foi lá e disse não. Entregou um bilhete que ele escrevera horas antes da sua morte. Não quero tributos, só quero que permaneça por toda a vida o nome que conheci, sempre amei e admirei. Grupo Escoteiro Estrelas cintilantes.
Ainda hoje visito Cecília. Uma forte mulher. Não pediu nada a ninguém. Trabalhava e dizia sempre que Netinho teria o que Martinho almejava. Se formar, ser um doutor, coisa que ele não tinha sido. É. Martinho pode não ter sido um doutor, mas ninguém nenhum doutorado em todo o mundo faria de um homem como ele o que ele foi. Ele foi mais que isso. Um grande chefe. Reto nas suas ações. Ilibados e impoluto no seu exemplo pessoal. Martinho se foi, seu modelo deveria ser seguido por tantos e tantos chefes, que tem sob a sua responsabilidade dezenas de jovens que esperam muito mais. Esperam que eles seus chefes sejam exemplos para que possam seguir na trilha escoteira sabendo que um homem digno foi seu amigo em toda sua fase de crescimento.
A tarde vai aos poucos se afastando. A noite chega de mansinho. Ainda estou sentado na cadeira de praia de frente para o mar. O sol já se foi. A brisa está sendo substituída pelo orvalho que cai. Li poucas páginas da história de Gandhi. Meus olhos voltaram a ficar vermelhos. Nem sempre as lembranças são como a gente quer. A vida é assim, uns ficam e outros vão. Nosso destino está traçado e o que somos são frutos que nós criamos pensando que estávamos acertando para um futuro melhor. Gosto de lembranças. Elas me fazem viver. Trazem-me saudades ou mesmo sorrisos dos tempos que já se foram e não voltam mais.
E quem quiser que conte outra..
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Saudade são águas passadas que se acumulam em nossos corações, inundam nossos pensamentos,
transbordam por nossos olhos, deslizam em gotículas de lembranças que por fim, morrem na realidade de nossos lábios.
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