JIPARANÃ, O VALENTE ESCOTEIRO DO OESTE
Nós geralmente descobrimos o que fazer percebendo aquilo que não devemos fazer. E provavelmente aquele que nunca cometeu um erro nunca fez uma descoberta.
Samuel Smiles
Conheci Jiparanã em agosto de 63. Não esqueço a data porque foi um fato peculiar. Estava atuando como Chefe Sênior e na falta do Capitão Marlon, nosso Chefe do Grupo o substituía nas suas funções, pois também era o Sub. Chefe do Grupo. Naquela época ainda existia esta hierarquia. Lembro como era prático e como nos facilitava nos impedimentos. Esquecemos, no entanto esta terminologia e vamos retornar ao meu amigo Jiparanã.
Quando o vi pela primeira vez, surgiu de repente em nossa sede em um sábado. Estava preparando junto com dois seniores, um jogo de força e agilidade, usando cinco bastões, dois tambores de 200 litros, quatro garrafas com água pela metade, cordas grossas, 3 cadeiras, 5 velas e duas lonas de mais ou menos 3 mts quadrados. Eles viram este jogo feito durante um exercício dos recrutas do Tiro de Guerra e gostaram muito. Substituímos os fuzis pelo bastão.
(Nas pequenas cidades mais distantes de um quartel do exército, com dificuldades de recrutamento e para utilizar os jovens na idade de serviço militar, foram criados pequenos batalhões com o nome de Tiro de Guerra. Até hoje ainda existem).
De modo gentil perguntei a ele se poderia ajudar. Sem se apresentar e com um vozeirão de “arrasa quarteirão” disse que era para abrir uma vaga ao seu filho. Com 8 anos desejava para ele uma formação militar, rígida e disciplinar e ali no grupo Escoteiro, pois isto poderia fazer dele um “homem” bem cedo, disse.
Não pediu. Ordenou. Não o conhecia ainda e não gostei do modo como se dirigiu a mim falando alto e exigindo em vez de solicitar. Sem meios preâmbulos o mandei voltar outro sábado para conversar com o Chefe do Grupo. Não estava disposto a dialogar com uma pessoa autoritária e mal educada.
Alem de participar do movimento desde lobinho, também tinha meus repentes que a custo controlava. Servi o exército por um ano e pensando em ser um oficial por sugestão do nosso Chefe do Grupo ingressei na Policia Militar por um ano e meio. Não deu certo. Não era o que queria. Portanto obtive uma formação de não levar desaforo para casa.
Ele não me ouviu e sem pestanejar saiu deixando seu filho e na porta falando alto: – Tomem conta dele. Se alguma coisa acontecer vocês serão os responsáveis.
Partiu como chegou. Caramba! Pensei. E agora? O que devia fazer? Ainda não existia o celular e nem telefone na sede para avisar ao Chefe do Grupo. No salão vi o menino que estava em posição de sentido olhando para mim, muito circunspecto achei que seria mais sensato levá-lo até ao Akelá, explicando os motivos e deixá-lo participar, pois no sábado quando o Chefe do Grupo estivesse presente falaríamos a respeito.
No final da reunião Dinho (apelido do menino) foi embora sem nos avisar e antes de ir chegou próximo a mim, fez pose militar e me deu O Melhor Possível com uma saudação de lobinho muito bem feita que me espantou para o seu primeiro dia.
Fui para casa tentando controlar os nervos. Naquela época era comum todos nós dentro das limitações de distância ir a pé, uniformizados, pois assim fomos ensinados para que todos pudessem conhecer bem os escoteiros. Já tínhamos o respeito da comunidade, mas era sempre bom fazer nosso proselitismo pessoal.
Pensava o pior e como aprendi a domar meus ímpetos inesperados concluí que não haveria uma segunda vez. Aquele pai iria saber com quem estava falando e iria exigir respeito e educação. Não podia passar em branco. Claro, tinha pela lei escoteira o maior respeito, mas se isto fosse do domínio público, seria motivo de piada para todos.
Mal virei à esquina e o vi em um bar. Com mesas e cadeiras espalhadas debaixo de uma castanheira antiga, onde sempre me reunia com amigos ele estava só, bebendo uma cerveja. Ele se levantou e fez sinal para aproximar. Ora, ora! Fala-se no tinhoso e ali estava ele. Pensei – Se não desse bola seria mal educado, se desse atenção poderia ouvir o que não queria. Enfim entre o sim e entre o não me aproximei.
Não vou entrar em detalhes da conversa, do salgadinho, da cerveja e dos “causos” contados por ele. (não se assustem por saber que um chefe de uniforme estava ficando “borracho” em um bar, mas ainda permanecia sóbrio e consegui chegar em casa sem delongas). Saí dalí impressionado com que ouvi e vi. Jiparanã se tornou um grande amigo e que ficaria na lembrança para sempre. Não mudou sua maneira, mas dentro de si tinha um enorme coração.
Um dia, sem indagar ou perscrutar antes, aproximou de mim em uma reunião e perguntou quando podia fazer o uniforme e onde compraria o chapéu e os distintivos. Expliquei para ele que não era assim, havia normas, ele teria que passar por elas. – Bolas para as normas – disse. E na semana seguinte apareceu de uniforme surpreendendo a todos nós. O próprio Chefe do Grupo resolveu relevar. Me procurou e comentou que aquilo era “Fogo de Palha” e logo logo ele iria submergir.
Isto não aconteceu. Por duas vezes sem avisar se inscreveu em cursos na capital e os fez com seu rompante habitual. Mas fora isto era um comparte e excelente escotista. Dedicado, organizado e prestativo. Ficou como meu assistente na Tropa Sênior e os jovens o adoravam. Muitos ficavam horas no seu estabelecimento comercial (açougue) conversando e aprendendo com ele suas aptidões.
Nas atividades ao ar livre e nos grandes acampamentos se mostrava um excelente mateiro, deixando muitas vezes os seniores embasbacados com seus conhecimentos de sobrevivência na selva. Isto fez dele um herói e garanto que não me senti ofendido. Para mim era magnífico, pois motivos óbvios estavam sendo programados para minha mudança de cidade. E assim teria alguém para me substituir.
Conseguiu se impor e elaborava atividades com grupos de outras cidades e acredito que o comparecimento maciço era por sua causa. Todos admiravam seu caráter, sua maneira franca e generosa e convites sempre apareciam para mudar de cidade. Chamamentos estes que partiam de outros Grupos Escoteiros.
Incrível como o Chefe Jiparã com seus rompantes conquistava aqui e ali. Fez uma gama de amigos o que me deixava boquiaberto. Não aceitou nenhum convite. Era convicto em seus ideais. Gostava e amava nosso Grupo Escoteiro.
Seu gênio e altivez aos poucos foi contido, mas era comum quando ouvia uma piada de suas pernas nuas abaixo da calça curta que por sinal era bem composta de cabelos, voltava e dizia – Você acha bonita? Deve ser igual a da sua mãe! Porque não vai lá olhar? Eu já vi e gostei! – Claro ninguém respondia. Seu estilo, seu bigode, sua altura, sua força não era para ser arrostada.
Passaram-se acho eu, uns dois anos, Jiparanã era bem conhecido pelos dirigentes regionais e em um Conselho Nacional se mostrou erudito, conhecedor e sempre que podia usava da palavra falando do que entendia ou nada sabia. Todos aplaudiam sua participação. Sua coleção de amigos já era numerosa.
Por motivos inequívocos mudei de cidade. Cinco anos depois tive uma noticia que me deixou apalermado. Jiparanã tinha sido preso e fora condenado a 3 anos de prisão. Nossa amizade era tanta, que na semana seguinte pedi licença na minha empresa por 5 dias e peguei o trem noturno até a minha antiga cidade.
O meu amigo Capitão Marlon me contou a história. Jiparanã estava em seu açougue e chegou dois bêbados rindo e debochando, falando que ele um autêntico “homossexual” (em outras palavras claro) e que devia fazer o mesmo com seus meninos do “escoteiro”. Você pode imaginar o que aconteceu. Jiparanã deu uma tremenda surra nos dois. Foram parar no hospital.
A história poderia ter terminado ali, mas os dois borrachos em uma noite, o atacaram em uma esquina, e mesmo ferido a faca em diversos lugares, matou um deles torcendo seu pescoço. Claro que foi legítima defesa. Mas o que foi morto era de uma família rica que contratou um advogado para assessorar o promotor.
O juiz levando em consideração o passado de Jiparanã, pois conhecia seu trabalho no escotismo, lhe deu 3 anos com possibilidade de sair em um ano por bom comportamento. Fui visitar Jiparanã na penitenciária. Ele estava sorridente, alegre e me recebeu com regozijo, me abraçando e apresentando aos amigos da prisão. Me senti forasteiro ali. Conversamos por horas.
Antes de partir o visitei outra vez e ele me disse que recebera uma carta da Direção Nacional, suspendendo-o das suas atividades de escotista, e enquanto não fosse feito o inquérito habitual ele não podia vestir o uniforme e participar de atividades afins.
O Chefe do Grupo me mandou uma correspondência, um ano depois, comentando o caso de Jiparanã. Saiu da cadeia, e não voltou mais ao escotismo. A Direção Nacional o absolveu, mas colocou ressalva na sua participação.
Os seniores estavam com nova chefia, mas apesar da proibição, Jiparanã ainda fazia atividades com eles, sem uniforme, mas com aquela maneira cativante que de arrogante passou a ser amado por todos que o conheciam. Seu filho (esqueci de comentar que era viúvo) passou para a tropa de escoteiros, foi primeira classe e nos seniores conseguiu a eficiência II. Ainda lá permanece.
Não tive mais notícias. Muitos episódios me fizeram pensar em outras plagas. Jiparanã deixou saudades. Foi para mim um caso especial. Onde estiver e se ainda estiver vivo (deve estar com mais de 80 anos) espero que tenha alcançado a felicidade que sempre mereceu. Fico com saudades sempre que lembro dele, Jiparanã, o valente escoteiro do oeste!
Talvez esta não seja uma história interessante. Sei disto, mas quando me sinto nostálgico e me lembro de um passado distante me disponho a escrever. Histórias são histórias e cada uma delas tem sua razão de ser. Nem sempre conhecemos os bons e os maus em profundidade. Se merecem fazemos referências se são amigos contamos histórias.
Em meu rol de amigos, que foram tantos, mantive na lembrança os fatos, as histórias e antes que desapareçam para sempre, as anoto-as para que não se percam no redemoinho do esquecimento.
E quem quiser que conte outra...
Uma pequena parte do Adeus de Baden Powell:
- A felicidade não vem da riqueza, nem do sucesso profissional nem do comodismo da vida regalada e da satisfação dos próprios apetites. Um passo para a felicidade é, enquanto jovem, tornar-se forte e saudável para poder ser útil e gozar a vida quando adulto.
- O estudo da natureza mostrará a vocês quão cheio de coisas belas e maravilhosas Deus fez o mundo para o nosso deleite.
- Fiquem contentes com o que possuem e tirem disso o melhor proveito. Vejam o lado bom das coisas em vez do lado pior.
- Mas o melhor meio de alcançar a felicidade é proporcionar aos outros a felicidade.
- Procurem deixar este mundo um pouco melhor do que o encontraram e, quando chegar à hora de morrer, poderão morrer felizes, sentindo que pelo menos não desperdiçaram o tempo e que procuraram fazer o melhor possível.
- Mantenham-se fieis a Promessa Escoteira, mesmo quando já tenham deixado de serem rapazes. Que Deus ajude a todos a procederem assim,
Do amigo, BADEN POWELL OF GIWEL
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