Ashanti, uma pioneira no Rio da Esperança
Não peço riquezas nem esperanças, nem amor,
Nem um amigo que me compreenda. Tudo o que eu peço
É um céu sobre mim e um caminho a meus pés.
A chalana seguia seu curso rio abaixo. Dos dois lados mata fechada. Já tínhamos passado por dezenas de igarapés. As barrancas mostravam a cheia do ano passado. O rio Madeira ali não era majestoso, dizem que ele tem mais de 2.500 quilômetros de extensão. Dizem ainda ser o maior afluente do rio Amazonas. Diziam também que se chamava Cuyari, assim conhecido pela grande nação dos Tupinambás a muitos e muitos anos atrás.
Mais de dois dias já haviam se passado desde nossa saída de Humaitá (terra da Mangaba) no norte do Pará. Chegamos ali pela BR-319 que liga Porto "Velho" a Manaus. Bem próximo, a Usina hidroelétrica do Jirau parecia que não ia sair do papel nunca. Um conflito entre o sagrado e profano. Ninguém sabia mais se ali era a Cachoeira do Padre ou o Caldeirão do Inferno. Mas essa é outra historia.
O comandante do barco, o Velho Mestre Antoninho das Mercês agora um amigo de todos nós, nos dizia que chegaríamos por volta da uma da manhã em Santarém. Passamos pelas pequenas vilas de Trata-Sério Macacos e Ilha Teotônio. Em Santarém tentaríamos um vôo da Força Aérea Brasileira até Cuiabá. No inicio era uma viagem encantadora. Ver a floresta Amazônica e suas vilas ribeirinhas era um grande espetáculo. Agora, no entanto depois de dias ali, o espetáculo não era o mesmo.
Todos me chamam de Ashanti, apelido dado pelo meu amigo pioneiro Leo. Meu nome mesmo é Loreta Salmineu Montes. Sou pioneira do Clã Guarini (guerreiro lutador em tupi-guarani). Eu gostava do apelido, afinal tinha muito a ver com Baden Powell. Os Ashanti foram muito influentes antes da colonização européia. Histórias e histórias são contadas na vida de BP com eles. Em Gana as montanhas, florestas e savanas, são exuberantes.
Éramos doze pioneiros. Cinco moças e sete rapazes. Mas quem freqüentava as reuniões mesmo era eu e mais cinco. Os demais não tinham uma participação constante. Sabíamos que nos clãs isso era difícil. Trabalho, faculdade, uma época que cada um de nós está em busca seu futuro.
Passava das cinco da tarde quando ouvi um forte estrondo e uma batida. O barco adernou e fui para dentro do rio. Em minutos parte dele ficou submersa. Todos nós pioneiros nessa grande jornada (éramos seis) estávamos juntos na hora. No convés nos divertíamos com um jogo de dama. Dentro do rio procurei nadar até a margem que estava próxima. Leo, Marlon e Fanzini mergulharam até o fundo do barco a procura de sobreviventes. Eu Janete e Lívio chegamos à margem sem problemas.
Logo a pequena praia estava cheia de sobreviventes. Sempre o Leo, Marlon e Fanzini traziam crianças e mulheres que não sabiam nadar. O Mestre Antoninho também fazia o mesmo. Não sabia quantos estavam na embarcação. Mas não deviam passa de vinte. Eu e Janete ajudávamos os que estavam ainda fora de si com a respiração artificial e tentando esquentar o corpo fazendo fricção. Logo voltavam a si. Meia hora depois, estavam todos na margem. Ninguém chorava a falta de alguém sinal que todos haviam se salvado.
Nós os pioneiros éramos advindos dos seniores e guias. Exceto Janete, que já entrou com dezenove anos. Os passageiros estavam em pânico e fizemos um pequeno Conselho de Clã para tentar definir um plano de ação. Mestre Antoninho estava exausto. Vimos que ele não estava preparado para liderar. Perguntamos a ele se deu tempo de mandar um S.O.S a capitania. Ele disse que não. O barco afundou muito rápido. Vimos que iríamos passar a noite ali. Todos estavam molhados. Nossos pertences estavam no fundo do rio. Leo disse que ao amanhecer iria tentar recuperá-los.
Eu gostava do Leo. Para dizer a verdade, uma grande paixão escondida. Um grande pioneiro. Fora lobinho, escoteiro, e se gabava de ter sido um dos Cinco Magníficos da Patrulha Aconcágua quando sênior. Contou para nós historias fantásticas. Quando adentrou no Clã, não se adaptou. Achou muito parado. Muita conversa e pouca ação. Foi bem recebido por todos. No entanto nós já estávamos acostumados com aquela rotina. Nossas atividades eram mais promover em grupos de interesses, as atividades de ajuda ao próximo (muito poucas), algumas de campismo sem aprofundar muito nas técnicas antes realizadas por nós quando seniores/guias.
Nossa progressividade estava em passo de espera. Ninguém ainda conseguira a Insígnia de BP. O Sr. Bartilio e sua esposa dona Edna, eram respectivamente nosso mestre e nossa mestre pioneira. Tinham feitos alguns cursos de formação, no entanto não eram freqüentes nas reuniões e pouco entendiam de pioneirismo.
Leo quando fez a investidura, deu um novo ânimo ao Clã. Passou a entusiasmar a todos, criou atividades diferentes. Agora fazíamos nossas áreas de interesse com gosto. Antes desta grande aventura estivemos em duas atividades nacionais, dois mutirões pioneiros e fomos para uma aventura no pico do Itatiaia. Outras tantas foram realizadas e saborosas. Foi muito divertido.
Foi difícil fazer uma fogueira. Ninguém tinha isqueiros e nem fósforos secos. O Fanzini disse que conseguiria. Entrou um pouco na floresta e voltou com uma madeira verde, vários cipós, fez um pequeno arco e limpou bem uma madeira com ponta nos dois lados. Pegou duas lascas de arvores, furou no meio, e elas serviram de tampa onde girava em boa velocidade um pequeno pedaço de madeira seca. Demorou. Acho que mais de hora. Revezamos na ação. O Braço doía, mas uma pequena fumaça apareceu. Capim seco e logo o fogo brotou. Todos sorriram. Alguns bateram palmas. A fogueira cresceu. Em volta os sobreviventes se achegaram para esquentar e tentar secar suas roupas molhadas.
Não tínhamos nada para comer. À noite nem sabíamos o que a mata poderia oferecer. Leo pediu ajuda a alguns homens e organizou uma pequena guarda em volta do campo. Duas horas para cada dupla. Foi difícil aquela noite. Muitos não conseguiam dormir. Nós os pioneiros dormimos fácil. Estávamos acostumados. Muitas e muitas noites dormindo ao ar livre, tendo as estrelas como barraca.
O dia amanheceu. Lindo, um sol maravilhoso. Mestre Antoninho calculou que lá pelas duas ou três horas deveria chegar ajuda. Parentes e encarregados de portos onde o barco devia apoitar, deveriam estar preocupados e avisariam a capitania. Dito e feito, antes das duas o barco patrulha da marinha e um da capitania, surgiram na curva do rio.
Pela manhã Leo, Fanzini e Marlon mergulharam em busca de nossas mochilas. Foram encontradas. Retiraram também várias malas e sacolas que ainda poderiam aproveitar. Os donos ficaram agradecidos. Mestre Antoninho conseguiu pegar latas de conserva na cozinha submersa. Deu para as crianças e mulheres. Nós não comemos nada. Não dava. No barco da capitania que estava junto ao barco patrulha lanchamos. Chegamos a Santarém a noitinha.
Quando o Leo apareceu no Clã, senti por ele mais que amizade. Mas ele não demonstrou o mesmo por mim. Ele namorava uma jovem, que não era do movimento e demonstrava ter um grande amor por ela. Tentei esconder meus sentimentos. Nâo era fácil. Afinal estávamos juntos sempre e em atividades por muito mais tempo do que ele ficava com ela. Estava difícil ficar ao lado dele sem ter esperança. Afinal cheguei à conclusão que o Clã era parte da minha vida e o Leo apareceu depois.
Em um grande mutirão pioneiro realizado no início do ano, conheci melhor a namorada do Leo. Ela a levou. Não sem antes solicitar autorização ao Mestre PI. Olhe, para ser sincera não gostei muito dela. Achei-a meio pedante. Vivia agarrada a ele todas as horas. Um ciúme doentio quando ele estava conosco. Nâo gosto muito de casais assim em atividades pioneiras. Tiram a liberdade dos amigos e outros que querem se aproximar.
Chegamos a Santarém já à noite. A Capitania nos ofereceu hospedagem em quartos até razoáveis. Não saímos pela cidade. Permanecemos ali, pois o sono era enorme. Aproveitamos para telefonar aos nossos familiares. A noticia do naufrágio já era do conhecimento deles. Diziam ter dado na imprensa a morte de muitos, mais de 20. Barco pequeno, mal cabia vinte. Não morreu ninguém, tenho certeza. Eu e o Leo ficamos na porta do meu quarto conversando. Dizia-me que iria terminar o namoro. Ela não deixava fazer o que mais gosta. Seria uma escolha difícil, ele dizia que a amava, mas seu coração pulsava forte nas atividades escoteiras. Não disse nada, nada poderia dizer naquele momento.
Fui dormir pensando no Leo. Não muito, dormi logo. Pela manhã fomos ao aeroporto. Demos sorte, um capitão da aeronáutica tinha sido escoteiro e conseguiu um vôo para São Paulo às duas da tarde. Um avião cargueiro. A viagem era tranqüila. Poucos cochilavam. Alguns jogavam damas e eu e Leo conversávamos banalidades. Ele me dizia que o pioneirismo era muito diferente do que pensava. Até concordava com os novos que adentravam direto no Clã. Mas ele se sentia um peixe fora d’agua.
Essa atividade foi planejada nos seus mínimos detalhes por ele. Afinal todos nós trabalhávamos e não seria fácil ficar mais de 15 dias em atividades aventureiras nessa região. Marcamos as férias em uma só data. No principio nove pioneiros. Cada um ficou encarregado de uma parte. Eu fiquei responsável pelas finanças. Todo mês me davam um valor que depositava em Caderneta de Poupança. O Mestre Pioneiro na iria assim como sua esposa. Depois desistiu o Josiel, e o Marco Antonio. Ambos teriam um estagio e não queriam faltar. Dos sete, tivemos ainda a deserção do Jason.
A sugestão do Leo era ir à até Belém, de lá a Manaus, e descer o Rio Madeira até Santarém. Uma volta e tanto. Quinze dias de atividades aventureiras para ficar marcado para sempre em nossas vidas pioneiras. Durante toda preparação que demorou um ano e meio, eu sonhava com essa atividade. Antes fomos a Caparaó e subimos o Pico da Bandeira. Passamos quatro dias no Pico do Itatiaia tudo idéia do Leo. Os pioneiros começaram a se motivar e grandes atividades foram realizadas. Só faltava mesmo o nosso Mestre Pioneiro se motivar, pois passava por uma situação crítica (perdeu o emprego).
Partimos às quatro da tarde. Uma viagem gostosa e tranqüila. Uns dois solavancos, o avião virou de lado. Olhei para o Leo e os demais. Ficamos assustados. Um tenente disse para ficarmos calmos. Apertar bem o cinto. Iríamos fazer um pouso de emergência em uma pista de mineradores perto dali. Pista pequena, mas o piloto era muito experiente. Só havia um problema, a pista estava cheia de buracos, feito pelo exercito com dinamite para que aviões de contrabandistas não usassem. Descemos. Uma pancada forte, fortíssima. O avião rodopiou e se partiu ao meio. Leo foi jogado a grande distancia preso a poltrona. Mais ninguém teve ferimentos graves. Corremos até lá. Leo tinha um corte profundo na perna e outro no couro cabeludo. Muito sangue.
Um dos tripulantes era medico. Fez ali os primeiros socorros. Senti uma pontada enorme no coração. Não podia perder o Leo. Que coisa, que aventura estava acontecendo conosco. Nâo foi planejado assim, mas se aconteceram tinham um motivo. Talvez de me aproximar mais do Leo. Meu coração batia forte por ele. Ele, no entanto só me olhava como amiga. Não demorou um helicóptero da FAB chegou. Levou-nos todos até Belém do Pará. Tivemos que ficar mais cinco dias lá. O Léo recuperava bem e deu para retornarmos a nossa cidade.
Eu ia sempre as reuniões de sábado. O Leu não. Não podia andar. Liguei para ele varias vezes, e fui a sua residência. Lá estava à namorada. Dois meses depois ele apareceu. Sorrindo para todos. No final da reunião me procurou e convidou para um cinema. Meu coração explodiu. Ele me disse que tinha terminado tudo. Descobrira que me amava. Incrível! Tudo que eu queria e sonhava. Nosso namoro era lindo. No Clã nunca demonstrávamos isso. Todos sabiam é claro.
Ficamos juntos no Clã até os vinte e um anos. Léo se formou em Engenharia mecatrônica. Uma grande proposta recebeu de um grande conglomerado de Hospitais sediados em Boston, nos Estados Unidos. Pediu-me em casamento. Queria que eu fosse com ele. Não titubeei um minuto. Meus pais acharam que eu devia me formar. Meu coração bateu mais forte. Em Boston moramos em uma bela casinha. Vi diversas vezes jovens da Boy Scouts na rua e eram em numero considerado. Fizemos uma visita a um grupo em uma quinta a noite. Não sei, não encontrei lá o que tínhamos aqui. Talvez aquele carinho, aquele sorriso franco.
Ainda moro em Boston. Faz oito anos que estou aqui. Sempre relembro com saudades os belos momentos da minha vida escoteira. Meu antigo Clã não sai nunca da minha mente. Meus amigos também. Aquela aventura no Rio Madeira ficou gravada em minha memória. Não o chamo de Madeira, para mim é o Rio da Esperança. Foi ali que tudo deu certo em minha vida, apesar dos tropeços de um naufrágio e na queda de um avião. Quando conto isso para amigos que temos aqui, eles não acreditam.
A esperança é a maior e a mais difícil vitória que a gente pode ter sobre a alma. Ela existe, está sempre fincada em nosso pensamento. Antes eu dizia que a esperança poderia alterar qualquer coisa. Claro, no fundo a gente não está querendo alterar as coisas. A gente está querendo desabrochar de um modo ou de outro. Seria isso mesmo? Sei o que é absoluto porque existo e sou relativa. Minha ignorância é realmente a minha esperança: não sei adjetivar. Olhando para o céu fico tonta de mim mesma.
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Tenho dois filhos lindos, são a minha vida. Sempre conto para eles a noite, deitada no tapete azul da sala que chamo de Rio Esperança, em frente à lareira, tudo que senti, vi e aconteceu comigo no escotismo. Eles me olham de maneira enigmática. Não entendem quase nada do que eu falo. Afinal um tem quatro e o outro cinco anos. Mas olho para eles, sorrio, e digo: - Meus filhos nunca percam a esperança. E então me lembro do poeta Fernando Pessoa, que dizia: - Ser feliz é encontrar força no perdão, esperanças nas batalhas, segurança no palco do medo, amor nos desencontros. É agradecer a Deus a cada minuto pelo milagre da vida. Amo o escotismo. Sempre amei e nunca irei esquecer os momentos felizes que lá passei...
E quem quiser que conte outra
Viver é acalentar sonhos e esperanças,
Fazendo da fé a nossa inspiração maior.
É buscar nas pequenas coisas, um grande motivo para ser feliz!
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