segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

Lendas Escoteiras. A cruz do meu destino.




Lendas Escoteiras.
A cruz do meu destino.

... - Você não precisa ser audacioso ou sabichão para ser escoteiro. Basta ser humano, basta ter sentimentos, basta ter coração. Precisa saber falar e calar, sobretudo ouvir. Tem que gostar de poesia, da madrugada, de pássaros, de sol, da lua, do canto da Cotovia, dos ventos e das canções da brisa. Quem sabe esta história serve para você?

- Sentei na beira do riacho no lusco fusco daquela tarde fria. Lágrimas corriam pela minha face... Pensei que não devia ter ido. Melhor ter ficado em casa. Mas eu precisava pensar. Tinha de tomar uma decisão e não sabia qual. Meus amigos não sabiam como aconselhar, pois nenhum deles passou pelo que eu estava passando. Qual caminho tomar? Ao voltar da reunião dos Escoteiros encontrei em cima da mesinha seu bilhete, bilhete não, uma carta. Longa, triste, ela disse tudo que queria dizer. Bateu fundo em meu coração. Machucou, mas eu merecia. Aquela noite eu chorei. Eu um homem feito com meus trinta e cinco anos chorava. Foi uma semana difícil no meu trabalho. No sábado cedo avisei ao Lucas Monitor da Lobo que não iria à reunião. Ele meu vizinho ficou ressabiado, não perguntou nada. Como Escoteiro e Monitor acho que sabia o porquê. Eu precisava pensar e nada melhor que procurar um lugar longe, onde o vento e a brisa da madrugada pudessem ser um bálsamo para curar minha dor e quem sabe o meu coração.

Sentado em uma pedra no alto da montanha, fiquei com a cabeça baixa ouvindo o cantar dos pássaros e o barulho borbulhante da cascata. Meus pensamentos iam a mil. O sol a pino e não tinha fome. A água da bica que diziam ser mágica não purificou minha alma. Nem o pintassilgo que pousou perto ajudou. Se não fosse quem fosse eu preferia morrer a passar pelo que estava passando. Mas era tão difícil assim? Quantos chefes passaram por isto? Afinal só existe a felicidade entre as famílias Escoteiras que participam juntos? Eu sabia que Verinha tinha razão. Ela sempre fora uma alma caridosa e tentou entender meu estilo de vida. Ela sempre foi uma companheira de verdade. Não posso reclamar. Fez tudo por mim e eu achava que também fazia por ela, mas dinheiro e palavras não foram suficientes. Ela queria carinho, minha presença, passear por aí, tirar férias na praia, ela adorava Juliano, nosso único filho. Mas eu cego e estupido achei que meu caminho era o de ajudar o escotismo. Agora via que enganava a mim mesmo. Olhava a água cristalina caindo sonolenta na cascata, batendo nas pedras e meus pensamentos a mil. Insensatamente não soube escolher. Escolhi errado. Meus olhos marejados de lágrimas só pioravam meu estado de espirito. Que vontade de gritar e dizer que não era o que queria!

Lembro quando tudo começou. Já haviam passado quase oito anos. Era realmente feliz. Passeava com ela e meu filho todos os fins de semana, íamos à casa de amigos, visitava a mãe dela que morava longe, uma viagem de avião gostosa e nunca faltei também com a minha mãe. Íamos a shoppings, restaurante, e nem sei quantas vezes fomos ao teatro Municipal. Viajamos por quase todo o nordeste e tínhamos planos de ir a Disney com a família. Não era rico, mas como Gerente da Fábrica tinha um bom salário. Um sábado Juliano me pedir para participar em um Grupo Escoteiro. Minha mente voltou ao passado quando sonhei em ser um e nunca fui. Trabalhava com meu pai, lutávamos com dificuldade e os dias que a féria era melhor sempre fora nos fins de semana. Porque não? Pensei. Fui com ele ao Grupo Escoteiro. Uma meninada alegre, adultos educados, jogos incríveis e me senti correndo com eles pensando nos meus tempos de criança. Juliano entrou. O Chefe Joy insistiu que eu entrasse também. Precisavam de voluntários e me pediu para ajudar.

Logo fiz a Promessa e em um ano assumi a tropa Escoteira. Para mim foi à glória. Agora como Chefe me sentia realizado. A meninada me chamava de Chefe Corisco. Porque Corisco? Não sei, mas eu gostava. Não perdia um curso, adorava ficar com eles conversando correndo brincando. Nestas horas eu não era Chefe era um menino. Tudo mudou em minha vida, parei de visitar meus pais e os pais dela. Quase não saímos mais, pois estava sempre fora nos finais de semana escoteirando. Reuniões, acampamentos, excursões, indabas e tudo piorou quando fui para o Jamboree. Na volta Verinha não falou comigo. Vi que ela estava magoada. Pensei comigo que no dia seguinte tudo iria mudar. Verinha era sistemática. Não falava, não reclamava, mas seu semblante era um livro aberto.

Quando Juliano pediu para sair fui ríspido com ele. Chamei-o de mole, sem força de vontade, disse que não tinha Espírito Escoteiro. Nunca me contou porque desistiu. Lucas o Monitor da Patrulha Pavão foi quem me procurou. – Olhe Chefe, Juliano cansou. Não quer mais. Acha que o senhor é muito exigente com ele. Cobra dele o que não cobra dos outros. Já não aguentava suas observações para que ele conseguisse ser um Lis de Ouro! – Seria isso mesmo? Porque não conversar com ele? A conversa nunca aconteceu. A vida de um Chefe Escoteiro hoje eu sei tem altos e baixos. Exigimos muito de nós e de nossos filhos esquecendo que eles são iguais aos outros. Sabemos que são a razão de nossa vida. Mas sair do escotismo? Nunca, eu amava o movimento. Depois que entrei me transformei. O escotismo passou a ser minha filosofia de vida. Juliano não voltou. Verinha conversava em monossílabos. Tudo estava acabando e eu cego não via. No grupo ninguém percebia, afinal nestas horas dificilmente temos alguém com experiência para nos orientar.

                       Sentado a noite em um tronco velho que achei em volta da pequena fogueira, a noite passou e agora só havia brasas, olhei para o céu estrelado pedindo a Nosso Senhor um novo caminho. Pedi a ele, pedi a Deus e os anjos escoteiros e nada. Chorei, chorava como um menino sem presentes sem sonhos sem nada. Tirei do bolso o bilhete de Verinha – Meu amor, eu te amo, demais mesmo, mas você parece não mais nos amar. Esqueceu que sou sua mulher e até de Juliano esqueceu. Não fala mais com ele. Nunca aceitei entrar com você no escotismo. Eu não sentia o mesmo que você. Nem todos nasceram para isto. Sei que você dificilmente vai deixar de ser um deles. Você já demonstrou isto na festa de aniversário do meu pai quando foi para a Assembleia, também esqueceu que sua mãe passava mal e mesmo assim foi para um Acampamento Distrital. Ela pedia sua presença naquele quarto do hospital e você não apareceu. Ela partiu sem ver você. Desculpe-me meu amor, mas não dá mais, estou indo embora. Aqui não volto mais. Juliano vai comigo. Quando contei para ele chorou muito, mas concordou. Saiba que eu te amo, amo demais e desejo que você seja feliz com seus amigos do escotismo.

                   Era meia noite quando juntei minhas tralhas e desci a serra. Minha decisão estava tomada. Eu não ia perder minha família. Amava o escotismo, mas minha família estava em primeiro lugar. Agora não seria mais assim. Entre um e outro ficaria com quem iria viver para sempre. Sei que o escotismo não tem culpa, mas quando participamos nos entregamos demais e esquecemo-nos dos nossos entes queridos. Vou atrás de Verinha e Juliano. Irei pedir perdão a eles de joelhos. Farei tudo para ela voltar. Não irei fazer promessas, pois minha escolha estava feita. Espero que Deus me ajude neste novo recomeço. Quando desci do avião e bati na porta da casa da mãe de Verinha me lembrei de Chico Xavier - Embora ninguém possa voltar atrás e fazer um novo começo, qualquer um pode começar agora e fazer um novo fim!

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Era uma vez... Em uma montanha bem perto do céu...

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