Lendas
Escoteiras.
O
Herói que não morreu.
Seu nome era Tito. Moreno, cabelos pretos, olhar triste, calado e que se
tornou um enigma para mim. Lembro que Tito adentrou na patrulha cinco meses após
minha chegada. Tito era diferente. Não havia sorrisos em seu rosto. No grito da
Patrulha ele nada dizia nem mesmo acompanhar com os lábios. Em reuniões de
Patrulha Tito não se manifestava. Várias vezes notei que ele estava em sintonia
com alguém. Não sabia quem ou o que podia ser. Não ouvia vozes só sua maneira
de olhar, balançar a cabeça como concordando. Os outros não comentavam.
Aceitavam Tito como ele era. Um dia procurei o Chefe Jordão e comentei sobre o
fato. Disse que minha opinião tinha ficado comigo e o monitor. A Patrulha não
desconfiava. Não comentei com mais ninguém. Não queria criar um clima ruim e
desconfiança afinal tínhamos uma patrulha unida.
O
meu chefe de tropa era um “cara” legal. Disse que não me preocupasse. Cada um
de nós temos os nossos problemas e agimos conforme fomos criados em nossa
família. Disse também que poderia notar que irmãos sempre são diferentes e
compete a cada um de nós aceitarmos como são. Quando ia saindo o Chefe me pediu
reserva, e não comentar-se com ninguém o que tinha observado. Um dia Norival um
Escoteiro seu vizinho me contou: - O pai de Tito era Australiano. Nos últimos
meses da guerra, se alistou. Enviado a frente de batalha foi morto por uma
granada já em território Alemão. A mãe de Tito estava grávida de quatro meses
quando ele partiu em 1943. Tito nasceu prematuro. Seus avôs resolveram não
ficar na Austrália e vieram para o Brasil. Ele sabe o que aconteceu. Não
esconderam nada dele.
Foi em um acampamento de fim de
semana que fizemos nas Corredeiras de São Mateus que Tito começou a demonstrar
seus poderes de percepção. Eu já conhecia o local e enquanto empurrávamos a carrocinha
vi ao longe uma enorme nuvem negra prenunciando chuva. Repeti baixinho uma
quadrinha: - Nuvens baixas cor de cobre, é temporal que se descobre. Se tens
chuva e depois vento, fica em guarda e toma tento. Tito fez um sinal com a mão
e pediu para todos pararem. - Não prossigam falou assustado. Em seguida não
mais que uns quinze metros a frente um raio de enormes proporções caiu abrindo
um buraco na estrada. Se Tito não tivesse nos parado não sei o que aconteceria.
Logo em seguida ele disse ao Monitor que não fosse para as Corredeiras de São
Mateus. – Por quê? Disse o Monitor. – Uma “Tromba d’água” iria cair dentro minutos
e vai inundar tudo! – disse. Ficamos pasmados! Primeiro o raio agora a
enchente. Afinal quem era Tito? Quando vimos às corredeiras do alto do morro
notamos que não havia chuva, nem Tromba d’água, nada. – Esperem, disse Tito,
aguardem. Não demorou muito e um trovejar como se fosse um grande avião
pousando mostrou a Tromba d’água arrasando tudo.
Se tivéssemos ido em
frente, não sei o que seria de nós. Olhamos para Tito e ele de cabeça baixa
nada mais falou. Bem, não vou entrar em mais detalhes, pois assim como veio, a “Tromba
d’água” se foi. Não sujou muito a grama e pudemos acampar com um pouco de
tranqüilidade. Ouve vários acontecimentos, mas aquele da estação onde
esperávamos o noturno para Vitória foi demais. Tito começou a balançar a
cabeça, os braços. Olhou para o Chefe e disse: O trem vai se atrasar, ouve um descarrilamento
e no último vagão morreu o condutor e oito passageiros. O chefe conversou com o
Chefe da Estação e este não sabia de nada, o trem já tinha partido da estação
próxima e deveria adentrar na gare pelos seus cálculos daí a 15 minutos. O
tempo passou e nada. Duas horas depois foi enviada uma vagonete para saber o
acontecido. Confirmou o que Tito tinha dito.
Afinal quem era Tito? Um
menino? Um Escoteiro ou um adivinho? Em outro acampamento encontrei Tito
sozinho sentado próximo a um Jequitibá e falando com alguém. Não vi ninguém. Levei
o maior susto quando senti uma mão nas minhas costas. Deus do céu. Quem era?
Estava fardado, parecia um fantasma por causa da luz branca e sorriu para mim.
Eu tremia como vara verde. Já ia correr quando ele disse que era o pai de Tito.
Como? Pensei eu. O pai de Tito morreu na guerra. Ele leu meus pensamentos e
disse que sim, havia morrido, mas seu espírito vinha sempre visitar Tito. Ele
era parte dele. Precisava dele. Eu não entendia. Meus joelhos tremiam. Notei
que minha calça estava molhada e pingando. Eu sabia que era um medroso de mão
cheia. O pai de Tito sorriu (era bem simpático) e me disse que seu filho tinha
uma grande amizade e admiração por mim. Ele contava comigo e eu não poderia
decepcioná-lo e logo desapareceu. Tito estava ajoelhado e chorando. Chorava e
chorava. Fui até ele e o peguei pelo braço. Ele se levantou e me abraçou. Disse
que eu era o único que sabia do seu contato com o pai. Ele não tinha contado
para ninguém.
Tito depois me contou
que o viu pela primeira vez tinha cinco anos. Sempre sonhou em ter seu pai de
volta. Sua mãe o deixava segurar a medalha que lhe deram e um certificado
dizendo que ele foi um herói. Um dia perguntou a Deus: - Senhor, se os tais
heróis não voltam para casa, será que vale a pena ser herói? Ele aparecia
sempre para mim. Sempre a dizer o que ia acontecer, o que devia fazer, me
orientava com minhas lições, dizia que estava sempre junto de mim em todos os
lugares. O tempo passou. Dois anos depois fui eleito monitor da Patrulha. Tito
era o meu sub. Nos entendíamos perfeitamente bem. Não houve mais comentários do
seu pai. Tito se tornou alegre, bem disposto e todos gostavam muito dele. Poucos
se lembravam da enchente, do raio e de várias outras premonições dele Muitos
fatos se sucederam de forma natural. Vivi o escotismo em sua plenitude. Nunca
vi um acidente, um braço ou perna quebrada, um afogamento. Nada. Agradeço a
Deus por isto. Mas também tenho que agradecer ao pai de Tito, pois poderia ter
morrido com um raio ou com uma enchente. Estou vivo. Graças a Deus.
Cresci fui embora da cidade
e nunca mais ouvi falar de Tito. Uma vez em um curso vi um dos alunos que não
era estranho para mim. Olhei sua ficha, e seu nome era Lindomar Fernando Neto.
Não me toquei. No final do curso, ele me olhou e disse – Não se lembras de mim meu
caro chefe? Lembrei! Agora já homem era a cara do seu pai. Nos abraçamos, fomos
após as despedidas juntos até um restaurante. Jantamos, tomamos uma cerveja
(ele só refrigerante) e me contou sua vida depois da minha saída. Não quis
casar. Pensava em ser um religioso. Entrou em um seminário e agora era um padre
da paróquia de São Manoel. Convidou-me para um dia ir visitá-lo. Eu iria
surpreender com o seu Grupo Escoteiro. Sorri. Quem diria! Bem como todo final
de história feliz, ele também sorriu. Ele foi para um lado e eu fui para o
outro. Nunca mais nos vimos. E que seja o que Deus quiser.
Nenhum comentário:
Postar um comentário