segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

Lendas escoteiras. Sombras de um passado.


Lendas escoteiras.
Sombras de um passado.

              O trem serpenteava o Rio do Sono. Pouco dava para ver, pois a escuridão da noite mal deixava ver a fumaça branca da locomotiva correndo sobre trilhos que o levaria a próxima estação. Durval na poltrona 74 dormitava. Voltava de um curso escoteiro que foi fazer na capital. Foi bom pensava. Aprendeu coisas que nunca pensava em saber. Lembrou quando tudo começou. Foi Thiago quem o convidou. Um menino gordinho filho de Dona Cecília sua vizinha. Não entendia nada, não tinha estudo mal um quarto ano primário.

              Cinco dias depois Thiago foi a sua casa com mais cinco meninos desta vez uniformizados. Sorriu quando renovaram o convite. Prometeram ser disciplinados e afirmaram que ele nunca ia se arrepender. Mesmo sabendo que sua mãe não ia entender, pois sofria do mal de Alzheimer ele sentou ao seu lado e contou tudo dos meninos do que ele viu nos livros da biblioteca e pensou em ajudar. Sua mãe sorria, entendia, mas logo esquecia.

              Quando seu pai morreu de “morte morrida” ainda não tinha feito doze anos. Sentiu uma falta enorme. Prometeu ao seu pai na sepultura que iria tomar conta de sua mãe para sempre. Tinha uma pequena sapataria, costurava, fazia meia sola, engraxava, e atendia a muitos fazendeiros e sitiantes com belas botas de cano alto que fazia com perfeição. Nunca foi rico. Como diziam na roça, “dava pru gasto”. Sua casa tinha dois quartos um para a mãe e outro para ele. Apareceram oportunidades de casamento. Nunca se casou. Sua mãe em primeiro lugar e agora o escotismo em segundo.

             Fazia menos de seis anos que se tornou um Chefe. Chefe? Nome pomposo demais e que ele nem sempre entendia o significado. Um amigo que sempre ia a capital comprou para ele alguns livros do fundador. Lia e relia. Era ali que aprendia a fazer escotismo com sua meninada. Ele amava a todos e todos o amavam também. Sentiu que alguém sentava ao lado dele. Continuou de olhos fechados, pois muitos viajantes não gostavam de prosa e ele pouco falava. Ouviu soluços, abriu os olhos e viu uma moça de seus vinte e cinco anos, morena clara sentada ao seu lado.

             Não sabia o que fazer. Nunca teve facilidades para conversar principalmente com uma moça tão linda. Linda demais. Suspirou fundo e disse: - Posso ajudar? – Ela não sorriu balançou a cabeça como a dizer não. O trem continuou seu traque-traque levando seus passageiros cada um para seu destino. Por várias horas ela continuou chorando. Parou. Olhou para ele: Desculpe moço. Minha vida se tornou um inferno. Ela se abriu com ele como ninguém nunca tinha feito antes. Disse seu nome: - Barbara Heliodora, uma simples mulher e não a poetiza e ativista politica brasileira. Ele notou que ela era estudada.

             Duas horas antes de chegar a sua cidade, ela terminou de contar sua saga. Fugiu da capital por medo de um ex-policial militar. Casado fez dela sua amante. Deu tudo de bom e melhor para ela. Nunca soube onde ele arrumou tanto dinheiro. Batia nela quase todos os dias. Começou a se sentir mal e fez exames vendo que tinha AIDS e quase se matou por isto. Fugiu dele. Tinha uns tostões guardados. – Para onde a senhora vai? – Ela sorriu. – Para nenhum lugar especial. Peguei este trem nem sei por quê.

              Ao parar na sua estação ele disse: Desça, venha comigo, darei hospedagem em troca de nada. Terá respeito e consideração. Ela quis dizer não, mas o convite era sincero. Na Rua Peçanha e na Av. Tiradentes os moradores chegaram a janela para ver o Chefe Escoteiro e uma madame cheia de penduricalhos. Onde ele arrumou esta “coisa”? Se perguntavam. Sua mãe a recebeu com carinho. Ficaram amigas. Ela agora dormia em seu quarto e ele na sala. Cinco meses depois se casaram. Nunca se amaram, pois ele ainda não sabia como enfrentar a doença dela. Viviam felizes, passeavam, ele a levou em inúmeros acampamentos.

              Tempos passados na loja da sapataria viu quando um Jeep parou na porta de sua casa. Um homem desceu. Ela estava no quintal colocando roupas no varal para secar. Ele Não entendeu. Ouviu tiros, correu até lá, Barbara estava caída de bruços e muito sangue na boca e no coração. O Jeep partiu a toda. Ele a pegou com as mãos e foi correndo até o hospital. Chegou morta. Ele sabia que estava morto também. Pensou em ir a capital e vingar sua morte. Sua mãe aconselhou. Os monitores o abraçaram dizendo que o perdão vale para todos.

                Nunca mais a esqueceu. Voltou a sua rotina na sua sapataria com sua mãe e nos escoteiros. Às vezes a dor machuca, não adianta chorar, ficar de pé seguir em frente era a melhor maneira de enfrentar sua solidão e sua perda. Nos guardados dela viu o nome do ex-soldado. Em um jornal de TV disseram que tinha sido morto por traficantes. O perdoou. Sabia que ele ia sofrer no céu e no inferno.

                Em cima da Pedra do Sino, na serra da Piedade, ele olhou o horizonte. Uma chuvinha leve e intermitente caia. Lágrimas caíram, pois não podia esquecer. Ouviu a voz dela dizendo: Thiago vou te esperar, não posso viver sem você! Um arco íris se formou quando a chuva passou.  Enxugou as lagrimas e pensou ao olhar os escoteiros sentados ao seu redor: - Meus irmãos, não tentem me entender, sou aquele Chefe que convidaram um dia e continuo o mesmo. Sem Barbara eu sei que dói muito, mas não vou desistir.

                 Eu não sei se este é o melhor caminho. Se agi certo ou errado. Vou seguir o meu destino e guardar sua lembrança no coração. – Um pequetito escoteiro foi até ele, deu um abraço e disse: - Chefe! Vamos continuar a caminhada?

Nota – Meu filho instalou a Netflix. Procurava uma série para ver. Veio-me a mente este conto. Deixei de lado a série que escolhi. Corri liguei o micro e meti os dedos no teclado. Em pouco tempo terminei. Estava pensando em mudar o final. Melhor não. Qual sua opinião? Ela deveria sobreviver para que eles pudessem viver felizes para sempre? Sua opinião será bem vinda.


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