domingo, 20 de janeiro de 2019

Contos da Jângal. Mortimer, um lobinho amigo do além.



Contos da Jângal.
Mortimer, um lobinho amigo do além.

Coveiro.
Numerar sepulturas e carneiros,
Reduzir carnes podres a algarismos,
Tal é, sem complicados silogismos,
A aritmética hedionda dos coveiros!

Um, dois, três, quatro, cinco... Esoterismos
Da Morte! E eu vejo, em fúlgidos letreiros,
Na progressão dos números inteiros
A gênese de todos os abismos!
Augusto dos anjos.

                     Mortimer era um infeliz. Era filho de Lomanto da Paz o coveiro do cemitério Flores Singelas. Na escola ninguém se aproximava dele. Tinham medo. Diziam que ele falava com os mortos. Não era verdade, mas que acreditaria nele? Sua casa ficava dentro do cemitério e mesmo linda, pintada de azul e branco com muitos manjericões e rosas brancas que seu pai plantava e cuidava com carinho, ninguém nunca pediu para conhecer onde morava. Sua mãe morrera quando nasceu. Seu pai o adorava e o tratava com carinho e um amor enorme. – Mortimer meu filho, um dia vão reconhecer que seja onde for a nossa casa é sagrada. Mas não adiantava o pai falar - Pai! Nós não recebemos visitas! Por quê? – Lomanto olhava seu filho e mesmo querendo explicar que todo mundo um dia iria morar ali, ninguém gostava de tocar no assunto. A morte sempre assustou os vivos.

                   Uma menina de cabelos loiros foi transferida para sua sala. Ele a olhava e quando ela olhava para ele ficava sem jeito e virava o rosto. No recreio ela o procurou. – Quer brincar? Mortimer assustou. Ele no recreio era um eterno esquecido. Ninguém nunca o chamou para brincar. Ficava sempre em um canto olhando todos correndo e sorrindo. Ela o pegou pela mão e começou a correr – Vamos! Tente me pegar! Foi o recreio mais lindo de sua vida. – Pai! Pai! Ele chegou correndo para contar – Pai eu agora tenho uma amiga! Lomanto riu e abraçou seu filho. Os outros jovens da escola olhavam o par com indiferença. Não diziam nada. O boato que corria é que se mexesse com ele os defuntos viriam à noite em seu quarto para puxar o pé. Um dia Noêmia o convidou para ir visitar sua alcateia. – O que é isto? Perguntou. – Uma escola diferente. Nada de carteira. Nada de quadro negro. Lá a professora se chama Akelá. Ela tem ajudantes. Cada um tem um nome de bichos da floresta. É como se nós vivêssemos em uma grande floresta.

                  Noêmia contou muita coisa. Mortimer ficou perplexo com o que ela contava. Havia um herói menino chamado Mowgly. Ele se perdeu na floresta e foi adotado por uma Alcateia de lobos. Todos eram amigos dele. Outros animais o protegiam. O Balu um urso grande e peludo, a Baguera uma pantera negra enorme, Hati o elefante e uma grande cobra píton chamada de Kaa. Mortimer queria saber tudo. Noêmia o convidou para ir com ela sábado ao grupo escoteiro. Seu pai foi junto. Vestiram a melhor roupa que usavam na missa dos domingos. Mortimer ficou com medo quando chegou lá. Centenas de meninos vestidos de azuis e cáqui com chapelão. Ele se assustou. Sabia que todos conheciam o Menino do cemitério. O menino que fala com os mortos. Engano. Ninguem disse nada. Foi recebido com palmas. Mortimer chorou de alegria.

                   Em casa falou para seu pai – Pai! Eu nunca pensei que fizesse tantos amigos em um só dia! – Filho, o mundo é bom, tem aqueles que não te conhecem e te julgam pelo que ouvem ou veem sem olhar o coração das pessoas. Mortimer dormiu feliz. Sonhava com o próximo sábado. Sonhava em ser mais um na Roca do Conselho. Disse para si mesmo que em breve estaria de azul e a gritar junto a todos no Grande Uivo. Mortimer passou a sorrir também na sala de aula. Chegava perto de muitos da classe e dizia, eu sou lobinho, lá eles são meus amigos. São felizes como eu. Eles cantam, dançam e sabem que a verdadeira amizade nasce de dentro do coração. Mesmo vocês não sendo meus amigos o Balu meu protetor me disse que não importa o que pensam de você, importa o que você pensa deles. E eu sou amigo de todos! – Toda a classe passou a ver Mortimer como mais um deles. Não era mais o filho do coveiro.

                  Dizem, eu não sei e nem posso afirmar que todos os domingos o Cemitério Flores Singelas enche de meninos que vão lá brincar nos arvoredos, no pequeno regato que nasce atrás das montanhas e eu soube que agora toda a cidade vê com outros olhos o lobinho Mortimer e seu pai Lomanto da Paz. Dizem também e eu não sei se é verdade que aprenderam uma lição com os Escoteiros. Eles e os lobinhos fazem questão da amizade. Dizem na cidade que lá todos que entram passam a ser irmãos. Até contam em rodas por aí que eles tem um pacto e quem entra passam a ser irmão de sangue para sempre. Agora que Mortimer cresceu e se casou com Noêmia disto eu tenho certeza. Que tiveram quatro filhos e Mortimer ainda mora no cemitério e é feliz eu também sei. Escotismo é assim, quem não tem amigos lá encontra um montão.

                  Esqueci-me de dizer que Mortimer hoje é o prefeito da cidade. A prefeitura vive cheia de Escoteiros e na porta tem uma grande placa escrita – Lord Baden Powell, cidadão do mundo, O Escoteiro Chefe Mundial e amigo e irmão de todos. Falar mais o que? Escotismo é coisa que marca que entra em nós para sempre. Dizer que somos aventureiros que somos Escoteiros e vivemos para ajudar o próximo é falar o obvio. Mortimer hoje corre o mundo dando palestras. Tornou-se um professor de história e escreveu muitos livros. Ninguem mais o chama de o amigo dos mortos, mas sim de o amigo do mundo. Graças a Mortimer eu também sou Escoteiro e esteja ele onde estiver receba meu abraço apertado, meu aperto de mão esquerda e meu Sempre Alerta!

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